A atividade “Ações Afirmativas na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF): acesso e permanência da população negra na graduação e na pós-graduação” reuniu na tarde desta sexta-feira, 11, estudantes cotistas, ex-cotistas, profissionais negros, coletivos negros e representantes da Administração Superior da UFJF. O evento, realizado no Anfiteatro das Pró-Reitorias, no campus sede, integra a programação da IV Semana da Consciência Negra, que teve início no dia 7 e vai até 18 de novembro.
Quatro momentos principais marcaram o encontro: a abertura com gestores universitários e representação estudantil; os relatos de vivências de estudantes cotistas e ex-cotistas negros; o debate sobre os avanços promovidos pelas ações afirmativas e os desafios atuais; e as apresentações culturais dos coletivos Sararau Criolo e Descolônia.
“A UFJF tem muito orgulho de receber cada uma e cada um dos alunos cotistas que escolheram a nossa instituição” – Marcus David
“A UFJF tem muito orgulho de receber cada uma e cada um dos alunos cotistas que escolheram a nossa instituição. Nós esperamos estar à altura, termos a capacidade de atender às expectativas e, efetivamente, contribuir para a formação de vocês. Não apenas a formação profissional, mas a formação cidadã, a formação de pessoas que vão ajudar a transformar a sociedade”, afirmou o reitor Marcus David.
O diretor de ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira de Oliveira, destacou que nesta edição a Semana da Consciência Negra tem como tema “Onde estão as histórias e culturas africana e afro-brasileira nos currículos acadêmicos? A urgência da Lei 10.639/03”. O referido regramento estabelece as diretrizes e bases para incluir, no currículo oficial da Rede Básica de Ensino, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira.
“Em janeiro, essa lei completará 20 anos. É uma lei fundamental. Depois, em 2008, veio a Lei 11.645/08 que incluiu a temática indígena, também muito importante. No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação elaborou as diretrizes curriculares e um dos artigos indica que essa questão também faz parte da avaliação dos cursos de graduação. A UFJF prevê a inclusão desses conteúdos em todos os seus cursos, conforme o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI), aprovado este ano e a ser implementado até 2026.”
Também participaram da mesa de abertura os pró-reitores de Assistência Estudantil, Cristina Simões Bezerra, de Pós-Graduação e Pesquisa, Mônica Ribeiro de Oliveira, e de Graduação, Cassiano Caon Amorim, além da coordenadora geral da Associação de Pós-Graduandos da UFJF, Dalila Varela Singulane, e o representante dos graduandos e integrante do movimento estudantil, Rafael Moisés.
“É necessário sempre falarmos que as cotas brasileiras não são apenas raciais, são também econômicas. As cotas também abraçam o branco periférico e de favela. Quando negam esse recorte, colocam o negro contra o branco pobre nas periferias, ignorando que nós, os negros, sempre acolhemos a quilombagem. Como dizia Abdias do Nascimento, a quilombagem é para todos. Os quilombos aceitavam negros, brancos e indígenas. Nossos corpos negros são solidários”, salientou Moisés, aluno do Bacharelado em Ciências Humanas.
Dalila Singulane ressaltou a relevância do Plano Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes) para a efetividade da “Lei de Cotas” nos cursos de graduação, garantindo a permanência dos estudantes no espaço acadêmico. Por outro lado, enfatizou os desafios vivenciados na pós-graduação devido às ausências de programa semelhante ao Pnaes para esse nível de formação e lei específica garantidora de uma política afirmativa. Em consequência, conforme a coordenadora, permanece reduzida a participação de negros e indígenas nos cursos de mestrado e doutorado.
Na UFJF, as cotas na pós-graduação foram aprovadas em 2021, através da Resolução 67/2021 do Conselho Superior (Consu). “O principal desafio hoje na pós-graduação é a questão da falta de auxílio estudantil. Precisamos de pesquisadores, fazendo os seus mestrados e doutorados, que representem o Brasil de fato. São essas pessoas que trazem para a universidade uma nova dinâmica, pesquisas e olhares das periferias, de quem sofre racismo todos os dias. Só assim conseguiremos que as universidades se tornem locais democráticos de fato. Por mais que tenhamos na graduação um cenário até animador, na pós-graduação é muito diferente. E estamos falando de estudantes pesquisadores que, provavelmente, vão retornar à universidade para dar aula. E sabemos o quanto a representatividade de negros e indígenas no corpo docente de institutos e universidades federais ainda é baixa.”
Vivências de cotistas e ex-cotistas
Na segunda etapa do encontro de acolhimento, foi realizada a mesa “Vivências de cotistas: fortalecimento das políticas de inclusão social”. Com mediação da ouvidora especializada em Ações Afirmativas, Danielle Teles da Cruz, participaram do debate a jornalista da TV Integração, Letícia Damasceno Correa, egressa da Faculdade de Comunicação da UFJF; o estudante de Medicina, Caio Mariano; e o mestrando em Educação e artista plástico, Pedro Ivo Cipriano.
“É bom estar aqui de volta da forma como eu sonhava lá atrás. Eu sou filha de uma mãe negra, solteira, que me incentivou muito a estar aqui. Eu fui cotista A, de renda, de escola pública, de cor/raça. Eu fui bolsista da Diretoria de Ações Afirmativas, ledora e transcritora para estudantes com deficiência. Através dessa experiência, eu tive contato com outras realidades. Hoje apresento um quadro na TV, que é o Fala Comunidade. Foi o que eu vivi aqui, na UFJF, que me possibilitou muito conhecimento, muito carinho pelas pessoas. Conhecer as diferenças, eu acho que isso é o mais importante. A mudança só acontece pelas ações afirmativas e pela quebra do preconceito”, contou Letícia Damasceno.
A avaliação é compartilhada pelo graduando em Medicina na UFJF, Caio Mariano. “Eu também sou cotista A, venho de um bairro periférico, o Linhares. Minha turma tem noventa pessoas e apenas duas ou três pessoas negras retintas. Realmente, como foi falado aqui, é fundamental pensar a questão da pós-graduação. Em seis anos, eu tive apenas dois professores negros. A Dani [professora Danielle Teles, ouvidora especializada em Ações Afirmativas da UFJF] e mais um. Quando vou aos hospitais, também não vejo médicos negros. Hoje eu sei da importância de estar aqui. Temos que permanecer aqui, para tentar mudar esse panorama. Temos a maioria da população negra no Brasil.”
Pedro Ivo Cipriano fez um relato da trajetória artística e acadêmica, exemplificando as novas problematizações e os deslocamentos promovidos pela presença negra no espaço acadêmico. Até o dia 14 de maio de 2023, é possível conferir o trabalho do artista plástico e mestrando em Educação, na exposição coletiva “Um Defeito de Cor”, no Museu de Arte do Rio (MAR), no Rio de Janeiro.
“É uma felicidade estar aqui neste lugar. Eu sou umbandista desde criança. Ser umbandista me constitui e foi isso que deu mote para o meu trabalho de artes visuais e me trouxe à universidade. Os terreiros de umbanda e candomblé sempre utilizaram as artes como uma tecnologia de comunicação com o invisível, que está presente a todo momento. Oxóssi [Oke Arô] está aqui, saudando vocês, com essa natureza abundante ali fora. O meu trabalho de mestrado é pensar o terreiro de umbanda como um espaço de educação não formal, porque no terreiro temos vários tipos de pedagogias acontecendo. O canto é uma delas, tem as artes visuais, a dança. Isso nos possibilita pensar como podemos levar esse conhecimento até as escolas.”
Para a ouvidora especializada e professora da Faculdade de Medicina, Danielle Teles, é fundamental conjugar e valorizar os saberes científico e tradicional e, do mesmo modo, analisar a sociedade a partir de uma perspectiva interseccional, ou seja, considerando marcadores como raça, classe social, origem, orientação sexual, identidade e expressão de gênero, entre outros fatores.
“Quando eu estou aqui, eu não estou só, eu carrego uma história comigo. O racismo estrutural nos acompanha e leva ao apagamento das nossas histórias. Essa negação se reflete no desprezo pela nossa cultura, pelos nossos valores e crenças, pelo nosso modo de pensar, ser e estar no mundo. Para que a gente consiga entender o nosso lugar na sociedade, não podemos perder a perspectiva de compreender raça, mas também classe, gênero e sexualidade. Nós estamos caminhando para a construção de uma outra universidade, mas precisamos compreender a importância desses espaços serem ocupados por outros corpos. É essa ocupação que leva a um movimento diferente daquele tido como hegemônico.”
Retrospectiva e perspectivas
A terceira etapa do encontro de acolhimento contou com a conferência “A Política de Ações Afirmativas: retrospectiva e perspectivas”, ministrada pela diretora-geral da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa), Giane Elisa Sales de Almeida.
“Com as cotas, as possibilidades são maiores de que a gente tenha oportunidades melhores do que as pessoas que vieram antes. Esse processo tem íntima relação com a melhora das condições de vida da população negra no país. Não é apenas sentar num banco da universidade. Não é só uma vaga, é uma possibilidade de reestruturação dos lugares da população negra na sociedade brasileira. A universidade tem a ver com relações de poder. As cotas têm a ver com alterar as relações de poder numa sociedade, rompem com paradigmas sobre o lugar da população negra no Brasil.”
Ex-aluna do curso de Pedagogia da UFJF no final dos anos 1990 e início dos 2000, Almeida recordou a articulação promovida, à época, para que a instituição fosse a primeira universidade federal de Minas Gerais a adotar uma política de ações afirmativas nos cursos de graduação. As cotas foram aprovadas na UFJF no ano de 2004, através da Resolução nº 16/2004 do Conselho Superior (Consu).
“A discussão das cotas foi um desejo da então reitora da UFJF, Margarida Salomão [atual prefeita de Juiz de Fora]. Ela vinha de Berkeley [EUA], do contato com essas experiências de ações afirmativas. Criou-se o processo, o professor Ignácio Delgado foi o responsável por conduzir essa articulação. Eu era aluna da Faculdade de Educação e participei disso. Fomos por todos os institutos e faculdades, levando a discussão que culminaria na votação do Consu para instituir as cotas.”
A diretora-geral da Funalfa também ressaltou a necessidade de comprometimento dos estudantes com a conjuntura brasileira. “A população mais prejudicada sempre é a população negra. Não dá para dissociar um assunto do outro. Se o Brasil for bom para a mulher preta, ele vai ser bom para todo mundo. A gente está lá no final em termos de acesso. A população que mais morreu de Covid-19 foi a população preta que não podia ficar em casa. O racismo nunca deu trégua, mas os últimos quatro anos foram pesados demais.”
“Não esqueçam do lugar de onde vieram, de quem são e o compromisso que é preciso ter. O momento da história exige que nós tragamos para as nossas discussões as nossas tecnologias” – Giane Elisa
Para o enfrentamento aos desafios postos, Almeida aponta a valorização e o reconhecimento da ancestralidade. “Vocês que estão chegando agora venham trazendo com vocês os que vieram antes. Não esqueçam do lugar de onde vieram, de quem são e o compromisso que é preciso ter. O momento da história exige que nós tragamos para as nossas discussões as nossas tecnologias. A gente sempre está numa encruzilhada. A encruzilhada é um negócio muito bom. A gente precisa deixar de ver a encruzilhada como a falta de caminhos e buscar as várias saídas [Laroiê]. Precisamos de pesquisas e projetos de extensão sobre o extermínio da juventude preta, sobre a precarização das relações de trabalho, por exemplo. Um povo que viveu durante 350 anos escravizado, e sofre o racismo de todas as formas até hoje, têm tecnologias de sobrevivência, de afetividade. Nós temos formas de sobrevivência da diáspora e isso precisa vir para dentro da universidade, para que a gente passe a fazer diferença na vida das pessoas.”
Semana da Consciência Negra
A IV Semana da Consciência Negra da UFJF teve início no dia 7 e vai até 18 de novembro. O tema desta edição é “Onde estão as histórias e culturas africana e afro-brasileira nos currículos acadêmicos? A urgência da Lei 10.639/03”. A participação é gratuita e aberta ao público em geral. Para certificação, é exigida inscrição prévia, via formulário eletrônico.
A iniciativa é organizada pela Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf) e pelo projeto de extensão “Encontro Temático da Comunidade Negra de Juiz de Fora”, e também integra a programação do Conselho Municipal da Promoção de Igualdade Racial de Juiz de Fora (Compir-JF).
Outras informações: acoesafirmativas@ufjf.br