Policiais abriram fogo contra mais de 20 mil sul africanos que protestavam pacificamente e desarmados em 21 de março de 1960, em Sharpeville  (Foto: Fundação Cultural Palmares)

21 de março marca o Dia Internacional para a Eliminação do Racismo ou também conhecido como o Dia Internacional contra a Discriminação Racial. A data foi instituída pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em memória ao episódio acontecido em 21 de março de 1960 na África do Sul: o massacre de Sharpeville. “Foi quando a polícia local assassinou 69 pessoas que manifestavam pacificamente contra o apartheid”, conta o diretor de Ações Afirmativas da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Julvan Moreira de Oliveira

A política de segregação racial da África do Sul, o chamado “apartheid”, implementado em 1948 e encerrado em 1994, promoveu um racismo direto, legal, institucionalizado e político, de acordo com a professora de História da África da UFJF, Fernanda Thomaz. No Brasil, embora não existam leis que determinem a segregação, ela existe em outro formato. 

“Essa segregação está no imaginário social, organiza a estrutura política. Na prática, essas leis (que não existem) estão presentes. A gente sabe quais espaços determinados sujeitos podem acessar ou não, e em quais ele será violentado e impedido pelo Estado. Não só os espaços são reservados, assim como as condições socioeconômicas, além da forma como o Estado lida com esse sujeito a partir do crivo do racismo”, observa. 

Sujeitos diferentes e distintas formas de opressão 

A luta contra o preconceito segue presente em diversos países, inclusive o Brasil. Na avaliação da pró-reitora de Assistência Estudantil (Proae) e professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFJF, Cristina Bezerra, o racismo estrutural marca a sociedade brasileira devido à forma “limitada” como o processo de escravidão foi superado no Brasil. Esse preconceito é sentido de formas diferentes em situações cotidianas.  

A segregação racial está no imaginário social e organiza a estrutura política, segundo Fernanda Thomaz (Foto: UFJF)

“Costumo dizer que há um machismo e um racismo nossos de cada dia. Se menosprezamos esses atos, dizendo que foi só uma brincadeira, que ‘não precisava se sentir ofendida’, cada vez mais a gente reforça esse tipo de situação. As mulheres negras são discriminadas nas mais diferentes dimensões da vida social, desde a educação, passando pelo trabalho e relações afetivas, vide os estudos sobre a solidão da mulher negra. Notamos mulheres, crianças e homens negros passando por esse processo de racismo, algo que já deveria ter sido superado há muito tempo”, reflete. 

A professora Fernanda Thomaz avalia que diferentes sujeitos experienciam o racismo de formas distintas na sociedade. “No caso das mulheres negras, elas são tocadas pelo racismo, pelo sexismo, a princípio são duas formas de opressão que se conjugam e colocam, talvez, essa mulher em lugar de maior subalternidade que os homens negros. Mas não para por aí: se formos além do crivo de gênero e chegarmos a mulheres negras pobres, mulheres negras de classe média, mulheres negras com deficiência ou que não têm deficiência, mulheres negras trans e mulheres negras cis. Dependendo da intersecção dessas formas de opressão, isso coloca essas pessoas em lugares de ainda mais subalternidade.”

Lei de Cotas completa 10 anos e pode ser revista

Em agosto de 2022, a Lei de Cotas completará uma década de promulgação. De acordo com o texto da lei, no prazo de dez anos a contar da data de publicação, o texto pode passar por revisão. A Lei nº 12.711/2012 determina que as instituições federais de ensino superior devem reservar, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes autodeclarados negros, pardos, indígenas, de baixa renda, com rendimento igual ou inferior a 1,5 salários mínimos e que tenham cursado integralmente o Ensino Médio em escolas públicas. 

Para Willian Cruz, a Lei de Cotas é importante ao gerar mobilidade social manifestada na troca de experiências e conhecimentos (Foto: Carolina de Paula)

Para o professor do Departamento de Ciências Exatas (ICE) da UFJF, Willian José da Cruz, a lei de cotas é importante para garantir o acesso à Universidade a grupos que historicamente não fizeram parte dela e essas ações devem ser ampliadas como forma de assegurar a permanência desses estudantes na graduação. 

“A importância da lei vai além de promover o acesso da população negra no ambiente escolar, mas também tem o papel de gerar a mobilidade social que se manifesta nas trocas de experiências e de conhecimentos, tanto científicos e econômicos quanto políticos e sociais. Hoje, podemos perceber, pelos resultados que estão sendo levantados, que há um grande impacto social, político, cultural e também simbólico no ambiente das universidades, pelo menos é o que eu posso observar aqui na UFJF. Mas há um caminho longo para seguir. Ainda temos poucos professores negros e negras no nosso quadro docente”, avalia. 

Em consonância com essa perspectiva, Julvan Moreira afirma que a UFJF tem historicamente se colocado nessa luta e considera que a Universidade “espelhará o racismo estrutural enquanto não tivermos, por exemplo, a mesma porcentagem de docentes negras e negros em relação à porcentagem desse grupo na sociedade brasileira, assim como a presença desses nos diversos espaços como pró-reitorias e diretorias. 

“Penso que a Educação é uma área fundamental para a superação dessas desigualdades e para a inserção da população negra nos diversos espaços sociais, superando essa estrutura de privilégios da branquitude, em que as pessoas negras não conseguem ver seus semelhantes entre os médicos que as atendem, entre os docentes das universidades, até a invisibilidade dos negros entre os poderes executivos, legislativo e judiciário”, comenta. 

Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da UFJF, Marco Duarte também acredita que a Universidade pode contribuir para a luta antirracista com a produção de conhecimento, tida em sua opinião como outra trincheira de combate contra o racismo. 

“O conhecimento científico no âmbito acadêmico pode ajudar e muito na luta antirracista, não desprivilegiando as outras formas de saberes, nos espaços dos terreiros, por exemplo, e inclusive os ancestrais. Mas não esqueçamos que a mesma ciência moderna também contribuiu com o racismo, o assim chamado racismo científico; bem como na transmissão do mito da democracia racial, na lógica do embranquecimento”, informa o pesquisador que também destaca produções de conhecimento com perspectiva antirracista de pensadores negros(as), como Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Virgínia Bicudo e Lélia Gonzalez. 

Reunir e refletir sobre a população negra

Para Julvan Moreira, a educação é uma área fundamental para superação da desigualdade entre negros e brancos (Foto: Carolina de Paula)

Iniciativas voltadas a promover a redução da desigualdade e a reparação de injustiças históricas existem também em outras frentes e com a participação de entes públicos. Outra ideia é refletir sobre a existência da população negra e divulgar suas realizações. Julvan Moreira destaca a participação de representantes da Universidade no Conselho Municipal para a Promoção da Igualdade Racial (Compir), mencionando que propostas da população negra da cidade são encaminhadas ao Poder Executivo para a elaboração de medidas para solucionar problemas que essas pessoas enfrentam. 

“Como a segregação residencial, que joga negros para bairros e morros sem nenhuma infraestrutura, com ausência de espaços verdes, de uma habitação digna, de serviços de transporte e coletas de lixo; os problemas da saúde da população negra, sem cuidados médicos básicos, com fortes prejuízos bio-psíquicos; a segregação no mercado de trabalho, que impõe aos negros os serviços mais desvalorizados, muitos sem nenhum direito trabalhista; a segurança alimentar, em que a maioria enfrenta atualmente, sem condições de comprar os gêneros alimentícios básicos; a violência policial, incluindo o encarceramento em massa da juventude negra. Essas são áreas que precisam ser pensadas e enfrentadas, pelos danos historicamente estabelecidos”, detalha. 

Outro exemplo é o programa de extensão Encontro Temático da Comunidade Negra de Juiz de Fora, cuja proposta é discutir e reunir a comunidade negra no âmbito da UFJF. Coordenador do projeto, o professor Willian Cruz relata que a ideia nasceu em um encontro realizado em 2019. A chegada da pandemia gerou uma mudança nos trabalhos – conversas com diversos atores foram gravadas e publicadas no canal do projeto no YouTube. 

O objetivo central deste programa é identificar nas artes, na educação, nas ciências de uma forma geral, negros e negras que se destacam em Minas Gerais, em especial na região Juiz de Fora e conhecer um pouco dos seus trabalhos. Estamos agora desenvolvendo uma pesquisa para identificar onde estão os negros e negras na nossa universidade (cursos, departamentos etc). Também estamos catalogando pesquisas na nossa instituição que tratam sobre a temática africana/afro-brasileira. Ao longo deste ano, vamos tentar apresentar os dados deste levantamento”, pontua Cruz, que integra o projeto junto com os professores Francione Carvalho, da Faculdade de Educação; Julvan Moreira; Zélia Ludwig, do Departamento de Física; e Fernanda Thomaz. 

Universidade tem canal para denúncias de discriminação

A UFJF conta com a Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas, destinada ao desenvolvimento de políticas de identificação de casos de discriminação e violência, apoio às vítimas e prevenção. O órgão é ligado à Diretoria de Ações Afirmativas (Diaaf). 

As demandas podem ser feitas de forma presencial, no Campus Universitário – Prédio da Reitoria. Outros canais são a plataforma Fala-Br ou o e-mail ouvidoriaespecializada.diaaf@ufjf.br. O telefone para contato é (32) 2102-3380. 

No site da Ouvidoria, estão disponibilizados materiais que podem orientá-lo(a) sobre seus direitos.