Imagina se houvesse a possibilidade de voltar no tempo para ouvir e conhecer os milhares de casos de mulheres que foram silenciadas em suas trajetórias? A ideia se tornou uma possibilidade real quando a professora da Faculdade de Letras (Fale), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Bárbara Simões, reconstruiu a história de Camelot, por meio da perspectiva da rainha Guinevere, esposa do Rei Arthur, desmascarando o não lugar de fala da mulher e trazendo o tema para a atualidade. 

A obra “Guinevere” (Penalux, 142 páginas) é uma reescritura de histórias clássicas da literatura inglesa, baseadas nas lendas arturianas, que foram escritas e compiladas no século XV e são recontadas até a contemporaneidade. Neste cenário, o livro abrange o triângulo amoroso entre o rei Arthur, Lancelot e a rainha Guinevere, narradas não apenas na literatura inglesa, mas na literatura ocidental. 

De acordo com a autora, o livro conta os acontecimentos de uma forma diferenciada, por se tratar de uma ficção, ao mesmo tempo em que é construída juntamente com elementos de ficção histórica. “Abordo a Britânia no final do século V e no início do século VI, momento em que acontecem as invasões dos anglosaxonicos que vão transformar a Ilha em Englaland / England – que significa terra dos anglos. Nesse momento histórico, localizei o que teria acontecido, pois essas lendas arturianas são inspiradas em uma resistência britânica contra os invasores bárbaros”, aponta.

Durante a construção da história, a professora conta que misturou personagens, baseada em pesquisas envolvendo lugares e costumes, como, por exemplo, é o caso da presença de Santo Agostinho de Cantuária, enviado por Roma à ilha para fazer missões. “É uma reconstrução também histórica, misturada a esse arsenal de lendas de personagens que vem da literatura inglesa. Só que tudo é abordado a partir do ponto de vista da rainha Guinevere. É ela quem conta essa história porque se trata da vida dela e, até então, essas narrativas são muito masculinas, ainda mais, por se tratarem de momentos como os de guerras.”

Narrativa de resistência
Ao longo da literatura, a rainha do rei Arthur aparece em meio à tomada da Britânia pelos anglosaxões, no momento da destruição de uma civilização existente e no surgimento de uma nova ordem. Guinevere aparece como uma mulher adúltera, já que trai o marido com o melhor amigo dele, Lancelot. A partir desse triângulo amoroso, cria-se uma relação em que a personagem acaba sendo culpada pela destruição e queda de Camelot, que, na verdade, seria Dummônia – o último reino britânico de resistência. 

Bárbara explica que, após a invasão dos anglosaxões, essa mulher passou a ser retratada como uma adúltera, mas que nunca teve a oportunidade de contar a sua versão da história, pois há uma presença forte do silenciamento da mulher, principalmente, naquele momento em que ela é vista como uma moeda de troca, ainda mais no caso de Guinevere, que casou em uma aliança para juntar reinos.

“A mulher entra como uma peça para ser trocada em casamentos e garantir poder e territórios. Assim, percebemos um lugar absolutamente silenciado e que traz, na verdade, uma consequência de silenciamentos e tudo mais que envolve o coletivo feminino. O meu livro aborda essa temática, pois a minha narradora é a Guinevere, como irmã Úrsula – depois que ela vai para o convento. Com o desaparecimento de Arthur na última batalha, ela está toda esfacelada, envolta neste mundo masculino, mas aproveita a chance de poder narrar. Então, conta sua história e a narrativa é um ato de resistência, de sair do silenciamento e colocar a sua versão dos fatos”, destaca.

Para a atualidade
Segundo Bárbara, a obra traz algumas possibilidades para os leitores que têm a oportunidade de trazer novas perspectivas para a atualidade. “Muito se fala em rever e reler a literatura e a história que nós aprendemos, e a forma na qual nos foi contada. É a possibilidade de fazer esse trabalho com um outro olhar, a partir de outros elementos mais contemporâneos. A obra traz para os dias de hoje essa questão do lugar da mulher, da mulher adúltera, da mulher que é sempre culpada pelos eventos e nos permite rever esse lugar e esses silenciamentos. É uma chance para personagens femininos, realmente marginalizados, para que possam recontar história e para que possamos rever o que a história fez com essas mulheres”, finaliza.

Sinopse
O romance conta a história da queda de Camelot sob o ponto de vista da personagem Guinevere. Situada entre 590 e 610 na Britânia romanizada, a obra traz figuras e fatos históricos, como a missão de Agostinho de Canterbury, o processo contínuo de conquistas dos anglo-saxões na ilha, as posteriores missões de Roma objetivando a conversão dos anglos, a romanização dos bispos da Britânia e as batalhas de resistência da Dumnônia à conquista dos invasores. 

Ao pano de fundo histórico, construído a partir de pesquisa de documentos, a narrativa mistura as lendas do Santo Graal e os mitos em torno de Arthur e Camelot, desenhando uma versão histórica a partir do olhar de uma personagem feminina e trágica. 

O romance traz reflexões existenciais e uma leitura contemporânea às lendas arturianas ao abordar a queda de um mundo sob o ponto de vista de uma mulher adúltera, culpada pela literatura ocidental e condenada a viver em um mosteiro como forma de pagar pelos pecados cometidos em sua vida. Julgada em várias versões dos mitos arturianos, Guinevere tem, neste texto, sua primeira chance de falar, e suas memórias serão tão fragmentadas quanto o mundo que se despedaça à sua volta, e tão nubladas quanto a Britânia que espera o retorno de Arthur.

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