A reclusão ao ambiente doméstico, a partir da perspectiva e da vivência das mulheres, intensificou o acúmulo de tarefas e, consequentemente, uma sobrecarga emocional ao longo da pandemia de Covid-19 – cenário que é especialmente observado entre aquelas que são mães. Não é diferente para mulheres cientistas que, ao longo desta matéria, compartilham dados e experiências sobre os impactos causados na rotina de estudantes e professoras em todo o país. Esta reportagem integra a série especial em homenagem aos dias internacionais das Mulheres e Meninas na Ciência (11/2) e da Mulher (8/3). 

“No início foi muito difícil, pois tinha só dois meses que eu havia concluído o meu mestrado em Educação, que cursei grávida e depois puérpera cuidando de um bebê. Minha pretensão no início de 2020 era começar a trabalhar fora logo após a conclusão do curso e isso não foi possível. Em fevereiro me separei do pai do meu filho e em março veio o isolamento social, tive que lidar com a maternidade solo realmente isolada de qualquer rede de apoio nesse período. Sentia muito medo e tive que me adaptar a ficar sozinha com o Serafim, que tinha só 2 anos, 24 horas por dia”. Este é o relato da Vitória Bergo, doutoranda em Ciências da Religião na UFJF. 

Ela conta que cuidava de si, do filho e da casa. Mas, aos poucos, foi encontrando formas de investir na vida profissional e acadêmica: “Em meio a crises de ansiedade, noites mal dormidas e muita angústia, ainda assim consegui estudar em casa com meu filho, passar no Doutorado e fazer um curso de Doula, que era meu sonho há tempos”. Mas as conquistas acabam acarretando na necessidade de conciliar todas as tarefas diárias. Bergo afirma que foi um processo muito estressante pela falta de individualidade e a obrigação de estar sempre disponível. 

“São muitas demandas invisíveis. Acho que o não reconhecimento da importância do trabalho doméstico nos leva a um lugar de invisibilidade. Invisibilizam nosso cansaço, nossos desejos, nossas frustrações, nossos sonhos, nossas dores. E, em meio a tudo isso, temos que seguir fazendo e cuidando de tudo, todos os dias, o que nos deixa muito atrás em relação ao foco e disposição para estudar e trabalhar”, pontua. A questão socioeconômica de vulnerabilidade social agravada pela pandemia ainda é, em sua opinião, muito negligenciada no espaço acadêmico.

Segundo relatório da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e da Gênero e Número, mais da metade das mulheres brasileiras passou a cuidar de alguém na pandemia. No entanto, há múltiplas realidades que precisam ser consideradas, como no caso das mulheres que vivem em áreas rurais, em que essa taxa foi de 62%, ou ainda para as mulheres negras que têm menos suporte nas tarefas de cuidado. 

Os depoimentos também mostraram como é complexa a leitura da condição de vida e de trabalho durante este período de isolamento social. “Mesmo as que seguem trabalhando, com renda, podem estar sob condições diferentes, mais precarizadas, em relação ao período anterior ao da quarentena”, de acordo com trecho da divulgação da pesquisa na página da SOF.  

Pauta coletiva
Como uma forma de dar visibilidade à discussão sobre a relação entre maternidade e carreira científica, foi criado o movimento Parent in Science, um coletivo de mães e pais que se uniram para esse fim. Na visão das idealizadoras, o objetivo é preencher um vazio de dados e de conhecimento sobre o impacto dos filhos na carreira científica de mulheres e homens. 

A pesquisadora da UFJF, Zélia Ludwig, é uma das cientistas integrantes do movimento e participou do programa especial produzido pelo Encontros A3 (disponível no Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts, Spotify, entre outros) em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, celebrado no último dia 11. No episódio mais recente do programa, Zélia, bem como as pesquisadoras convidadas Débora Araújo e Rossana Melo, citam os desafios da maternidade aliada à carreira científica e frente à pandemia.

Durante sua exposição, a professora do Departamento de Física mencionou sobre a pesquisa realizada no âmbito do Parent in Science em 2020 no contexto de isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. O objetivo era avaliar quais efeitos de gênero, raça e parentalidade impactam a produtividade acadêmica de pesquisadores nesse período. Ao todo, quase 15 mil cientistas – discentes de pós-graduação, pós-doutorandas(os) e docentes/pesquisadores – participaram do levantamento. 

“É um trabalho inédito porque, além de considerar a questão de gênero e de maternidade, também cruza com a questão racial. As mulheres negras, em todos os sentidos, sempre foram as mais afetadas. Outra coisa que ponderamos foram as informações sobre redes de apoio para mulheres cientistas que são mães solo”, afirmou.

De acordo com dados da investigação sobre a produtividade acadêmica nesse período, entre as(os) pós-doutorandas(os), apenas 34% das mulheres com filhos submeteram artigos científicos como o planejado, enquanto que para os homens o índice foi de 58,4%. Considerando aqueles sem filhos, 49,2% das mulheres e 67,6% dos homens conseguiram cumprir a meta prevista de publicação. 

Ao buscar entender a dinâmica sobre os efeitos de raça, a diferença também é significativa: 31,1% para as mulheres negras e 38% para as mulheres brancas; 61% para os homens negros e 54,2% para os homens brancos. Com relação aos pós-doutorandos(as) que estão conseguindo trabalhar remotamente, apenas 2,2% das mulheres com filhos alegaram positivamente e 4,2% dos homens com filhos. Essa taxa sobe para 25,1% no caso das mulheres sem filhos e 37,6% para os homens sem filhos. 

A docente, que também é mãe, negra e atua numa área do conhecimento ainda de maioria masculina, acredita que “mães são mais solicitadas, mesmo quando os pais são participativos. E muitos, às vezes, encaram isso como uma grande tarefa, um grande serviço. Isso tem que ser discutido com os nossos colegas, precisamos que compreendam que são seres atuantes nesses cenários e que devem participar disso”. 

Saúde mental
Os marcadores sociais e de gênero são pontos fundamentais para a compreensão dos impactos que a pandemia trouxe para a vida e saúde mental da população. Fatores como as condições de renda, trabalho, moradia, organização familiar e acesso à informação estão diretamente relacionados às diferentes vivências nesse contexto. 

O recorte de gênero revela como esses impactos são sentidos de formas distintas por homens e por mulheres. Segundo a professora do Departamento de Medicina da UFJF-GV Maria Gabriela Bicalho, por esse caminho, é possível refletir sobre como homens e mulheres vivenciaram o trabalho remoto e a suspensão das atividades de creches e escolas, considerando que ainda são as mulheres as principais responsáveis pelo cuidado com crianças e idosos, e pela realização e gestão do trabalho doméstico. 

“A junção entre os espaços do trabalho doméstico e de cuidados e da atuação profissional remunerada expôs as mulheres a situações de stress, insegurança e sobrecarga de trabalho, com importantes impactos sobre a saúde mental”, alerta.  

Uma vez constatado este cenário, é natural que se busque respostas e soluções que sejam capazes de minimizar as diferenças de gênero e a sobrecarga mental e emocional que acaba recaindo sobre as mulheres. Nesse sentido, Bicalho ressalta a importância de se compreender que estes aspectos são estruturais: “Uma forma de minimizar ou evitar esse desgaste é exatamente a consciência sobre esses aspectos, que não se tratam de questões individuais”.

A promoção de diálogos sobre saúde mental na internet permite a ampliação no acesso à informação e, principalmente, a busca por debates e redes de apoio que podem auxiliar na compreensão destes aspectos estruturais que afetam, diretamente, a vida das mulheres. De acordo com a pesquisadora, a internet é positiva na medida em que legitima o sofrimento mental, mostrando que todas as pessoas sofrem psiquicamente e que esse sofrimento existe. Essa percepção é necessária para que as mulheres assumam suas dores e possam buscar ajuda qualificada. 

Contudo, é preciso chamar a atenção para o outro efeito. “O negativo é quando as pessoas se colocam como pessoas capazes e adequadas para lidar e para tratar estes aspectos, quando na verdade não são. A popularização é positiva desde que seja indicado a busca pelos profissionais da saúde.” 

Linha de frente feminina
Integrando desde o inicio da pandemia o Comitê de Monitoramento e Conduta e a Comissão de Infraestrutura e Saúde (CIS) da UFJF, a enfermeira Irene Duarte Souza atua no Colégio de Aplicação João XXIII e tem experiência no setor de mulheres do Hospital Universitário. Em sua opinião, as mulheres foram e são maioria na linha de frente contra a Covid-19.   

“A Enfermagem é a maior categoria de saúde do Brasil, são quase 2,5 milhões de profissionais e 85% são mulheres. São quase 60 mil profissionais infectadas e aproximadamente 900 mortas, mais da metade eram mulheres jovens, com idade média de 49 anos. Até janeiro, as mortes de trabalhadores da Enfermagem no Brasil concentravam, assustadoramente, um terço das mortes de profissionais de saúde de todo o mundo”, contextualiza a servidora da UFJF. 

Para Irene Souza, é justo recusar o arquétipo de heroínas, pois eram mulheres, filhas, irmãs, primas, amigas, mães, com longas jornadas de trabalho desgastante. “Muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas, por medidas de saúde pública, como testagem, rastreio, equipamentos de proteção, insumos e equipamentos nos hospitais, reforço no quadro de pessoal da saúde, vacinas, entre outros”, lamenta.  

Sobre a luta da categoria, ela conta que apesar de vários projetos de lei, a Enfermagem ainda não conseguiu instituir piso salarial e nem jornada de trabalho digna. Durante a pandemia podemos observar nitidamente o impacto assimétrico nas populações mais vulneráveis: “A atenção básica deve estar atenta aos determinantes sociais de saúde e a uma abordagem psicossocial. Não é real dizer que a pandemia foi igualmente difícil para todos. Grupos populacionais já vulneráveis por processos de exclusão social têm impactos mais severos, inclusive maior letalidade, como resultado da Covid-19 mas, especialmente, pela falta de políticas públicas”. 

Medidas urgentes
Diante dos dados e informações que vêm sendo levantados sobre impactos negativos na carreira científica, sobretudo para aqueles que acumulam a função de cuidadores, um grupo de 18 pesquisadores brasileiros, vinculados ao Parent in Science, publicou, em outubro do ano passado, uma carta na revista Nature Human Behaviour do grupo Nature.

A professora Zélia Ludwig é uma das autoras que assinam o texto e explica que o propósito era chamar a atenção para essa situação enfrentada por muitas pessoas, sobretudo as mulheres da comunidade científica. Os pesquisadores convocam ações urgentes e eficazes em todo o mundo, deixando uma série de contribuições que devem ser adotadas pelas instituições de ensino e pesquisa, agências de fomento à pesquisa e até pela sociedade de modo geral. 

“É preciso pontuar todos os efeitos negativos nos processos de avaliação e promoção, como nas questões quanto aos prazos de término de projetos”, exemplifica a docente que protagoniza diversos debates sobre as desigualdades de gênero e raça na comunidade científica. Outras propostas estão relacionadas à flexibilidade na jornada de trabalho e atenção especial a todas as intersecções. Também deve ser feito um levantamento de dados para orientar as políticas públicas voltadas para esse fim.

Em um contexto mais amplo, a enfermeira Irene Souza lembra que a maioria das mulheres ainda recebe menor remuneração do que os homens em grande parte das ocupações, tem tripla jornada de trabalho; muitas precisam cuidar dos filhos sozinhas e há aquelas que sofreram, ainda mais, violência doméstica durante a pandemia. “O grande desafio então é superar as desigualdades de gênero. Como colocado por Simone de Beauvoir, ‘não se nasce mulher, torna-se mulher’”, reflete.

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