As desigualdades no Brasil marcam não somente diferentes grupos sociais mas também a trajetória de diferentes gerações. São mulheres, crianças, adolescentes e populações carentes que sentem o impacto da pobreza e violência na construção de uma estrutura de vida e saúde mental. A partir deste cenário, surge a necessidade da presença e atuação do Núcleo de Pesquisa sobre Sujeitos, Política e Direitos Humanos (NUPSID), desenvolvido na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenado pelo professor Fernando Santana de Paiva, do Departamento de Psicologia. Essa matéria faz parte da série elaborada em função do dia Internacional dos Direitos Humanos, que é comemorado no dia 10 de dezembro.

O NUPSID conta com a participação e colaboração de docentes da Faculdade de Serviço Social e discentes de graduação e pós-graduação em Psicologia. No Núcleo existem duas linhas de investigação: ‘Subjetividade, Violências e Direitos Humanos’ e ‘Pobreza, Desigualdades Sociais e Intervenção Psicossocial’. “Temos desenvolvido uma série de pesquisas sobre os efeitos da desigualdade social e da pobreza na produção de subjetividade em diferentes segmentos da sociedade brasileira. Além disso, a violência estrutural e simbólica também tem sido objeto de alguns de nossos estudos, tendo em vista seus efeitos, tanto na construção de sujeitos, como na produção de sofrimento psíquico entre indivíduos e grupos sociais”, destaca Paiva. 

As pesquisas revelam as dificuldades que mulheres em situação de rua enfrentam para encontrar cuidados em saúde e saúde mental, adequados às suas necessidades. 

Violência e pobreza

As linhas de investigação se dedicam a compreender cada elemento a partir de uma perspectiva psicossocial e crítica das desigualdades e formas de violência, como a estatal, a policial, a midiática e, até mesmo, práticas como a humilhação e o racismo, que podem produzir efeitos negativos à saúde mental das pessoas. 

Segundo o coordenador do Núcleo, em uma investigação com jovens que fazem parte de medidas socioeducativas, observou-se relatos de experiências de institucionalização extremamente violentas, que são aplicadas por meio de castigos, punições e estigmatização. Além disso, Fernando destaca o papel da mídia neste contexto: “A mídia brasileira é responsável pela produção de violências na vida de jovens periféricos que são representados de maneira preconceituosa em reportagens voltadas para o grande público, contribuindo para a formação de uma opinião cristalizada e pouco crítica sobre as condições de vida de determinados segmentos da população brasileira e, colaborando, inclusive, para a perpetuação do racismo e da violência policial”. 

Como exemplo dos efeitos psicossociais produzidos pela desigualdade, o professor destaca uma investigação desenvolvida com mulheres em situação de rua, que revelou as dificuldades que essas mulheres enfrentam para encontrar cuidados em saúde e saúde mental, adequados às suas necessidades. 

“Somos um país profundamente desigual, sócio e economicamente, com uma pobreza estrutural e histórica. Além disso, a violência é uma questão central e urgente no Brasil, tendo em vista os índices alarmantes com os quais convivemos. É grave como boa parte da sociedade brasileira naturaliza tais questões, nos levando a uma adesão subjetiva da barbárie”, pontua Paiva. 

“O tráfico surge como uma forma destes jovens se afirmarem como indivíduos e conquistarem maior liberdade”, Flávia Guimarães

De ‘criança normal’ a ‘menino da boca’: trajetórias, resistências e perspectivas de jovens do tráfico de drogas

As pesquisas desenvolvidas no Núcleo geram muitas teses e dissertações ligadas ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFJF.  Flávia Fernandes Guimarães desenvolveu sua pesquisa de mestrado com o tema “De ‘criança normal’ a ‘menino da boca’: trajetórias, resistências e perspectivas de jovens do tráfico de drogas”, com orientação de Paiva. Segundo ela, a dissertação tem como objetivo analisar as trajetórias de vida de jovens inseridos no comércio ilegal de drogas, identificando os sentidos que eles atribuem ao tráfico. O estudo analisa se a inserção no tráfico de drogas pode se apresentar como uma estratégia de resistência e enfrentamento ao cenário de pobreza.

Para o desenvolvimento da pesquisa, foram ouvidos nove adolescentes, que tiveram experiências no tráfico de drogas e que estavam em cumprimento de medida socioeducativa no município de Juiz de Fora-MG. Flávia conta que, por meio das narrativas, foi possível notar que as trajetórias destes jovens são marcadas por constantes abreviações: “Vive-se uma breve infância, continuamente resumidas pela necessidade de sobrevivência em meio às mazelas da vida. Essa infância é, em geral, interrompida pela entrada no mundo adulto, que coincide com a adesão ao tráfico de drogas. Além disso, a dinâmica do tráfico também prejudica os vínculos familiares desses jovens, na maioria das vezes, já reduzidos, o que os leva a situações de extrema vulnerabilidade”. 

“O estudo é um convite à sociedade, para que sejam pensadas iniciativas e recursos para amenizar a ausência ou deficiência do Estado no desenvolvimento humano dos jovens que sentem as consequências da desigualdade e da marginalização”, Flávia Guimarães

Neste contexto, Flávia pontua que o tráfico surge como uma forma de esses jovens se afirmarem como indivíduos e conquistarem maior liberdade: “Liberdade em relação à marginalização, à miséria, à desigualdade social, à precariedade no que tange a políticas públicas de saúde, educação e assim por diante”.

Segundo a pesquisadora, este estudo é um convite à sociedade, para que sejam pensadas iniciativas e recursos para amenizar a ausência ou deficiência do Estado no desenvolvimento humano dos jovens que sentem as consequências da desigualdade e da marginalização. Além disso, Flávia destaca a importância de se pensar na preparação dos profissionais que trabalham nas instituições estatais e em que medida eles são sensibilizados a uma atuação contrária à repressão, violência e violação de direitos.

O professor orientador reafirma que temas como este são de extrema importância, uma vez que podem ser incorporados por diferentes atores responsáveis para a implementação de políticas públicas e intervenções profissionais mais qualificadas. “Este estudo contribui com missão da universidade pública da ciência de manter a ética e ser politicamente comprometida com a superação de uma sociedade desigual e violenta”, finaliza Paiva.