O projeto de extensão Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência (CDFT), do curso de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), atuou junto à Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) na primeira condenação internacional do Brasil por não cumprir seu papel na punição de crime de feminicídio. O grupo extensionista elaborou, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o memorial que auxiliou e fundamentou a decisão histórica da Corte IDH.
Na condenação inédita, ocorrida em novembro, o Brasil foi considerado culpado por não investigar e julgar com perspectiva de gênero o “Caso Márcia Barbosa”, pela utilização de estereótipos negativos em relação à vítima e pela aplicação indevida da imunidade parlamentar. O crime ocorreu em 1998, em João Pessoa (PB). Márcia foi assassinada pelo então deputado estadual Aércio Pereira de Lima, que só foi condenado por feminicídio nove anos depois, em 2007.
“A Corte Interamericana avaliou que a imunidade parlamentar vigente no Brasil, ocasionou um grave atraso no processo, resultando na violação dos direitos da vítima e de seus familiares. Além disso, entendeu que, durante o processo, houve a intenção de responsabilizar a vítima, por meio do uso de justificativas relacionadas à sua vida pessoal e sexualidade”, destaca o professor da Faculdade de Direito da UFJF e coordenador do projeto de extensão, Bruno Stigert
Na sentença, a Corte Interamericana solicita que o Brasil crie um sistema de coleta de dados sobre violências contra a mulher; promova treinamentos para as forças policiais e membros da Justiça; estabeleça um dia de reflexão e conscientização à Assembleia Legislativa da Paraíba sobre o impacto do feminicídio; além de outros pareceres.
A Pró-Reitoria de Extensão (Proex) conversou com o professor Bruno Stigert sobre a relevância da decisão; a participação da UFJF no caso; e as parcerias estabelecidas entre grupos de pesquisa e extensão de diferentes universidades públicas. Todo o trabalho desenvolvido pela “Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência” da UFJF também está documentado no livro “Feminicídio e Imunidades Parlamentares: uma análise do caso Márcia Barbosa versus Brasil na Corte IDH”
Confira a entrevista na íntegra
– Proex: O Brasil foi condenado por omissão e incapacidade de punir réu incontestável de feminicídio na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Conte-nos como se deu a participação do seu grupo de pesquisa e extensão nesse processo.
– Bruno Stigert: A Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência atua desde 2018 na Faculdade de Direito da UFJF. O projeto “Núcleo Interamericano de Direitos Humanos”, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por meio dos professores Siddharta Legale e Raisa Ribeiro, conhecendo nosso trabalho, nos convidou para fazer, em conjunto com eles, um memorial, no “Caso Márcia Barbosa e família versus Brasil”. Nossa participação se deu como “amicus curiae”, ou seja, “amigos da corte”. Somos muito gratos pela parceria. Coube a nós, da UFJF, elaborar, para compor o memorial, um capítulo sobre as imunidades materiais e formais de parlamentares no Brasil. A função do memorial é auxiliar os juízes da Corte Interamericana de Direitos Humanos a julgarem o caso. Ele é um memorial opinativo e entregue a todos os juízes, e os juízes podem usar ou não na decisão. A boa notícia é que o nosso trabalho foi muito utilizado nesse caso, convenceu e foi, portanto, fundamental na decisão final que condenou o Brasil por omissão.
– Proex: Conte-nos como essa decisão inédita pode colaborar para que outros casos de impunidade não aconteçam.
– Bruno Stigert: A questão da violência de gênero no Brasil é secular, remonta à nossa própria origem enquanto Estado. Mulheres não tinham direito ao voto, não tinham participação política, não tinham direito a trabalhar até pouco tempo atrás. Na legislação brasileira, a mulher era praticamente um acessório na mão de um homem, na família. Isso gera, portanto, uma cultura de violências simbólicas e físicas. No Brasil, a violência de gênero sempre foi muito imputada à mulher, muita das vezes por não ter um comportamento considerado “adequado” pela sociedade. Essa decisão da Corte IDH bota uma pá de cal sobre essa questão de gerar impunidades ou justificativas sociais ao homem que violenta mulheres. Essa decisão é um sinal para o Brasil que tem hoje, em seu aparato estatal e administrativo, pessoas que acabam endossando o discurso de violência de gênero. Precisamos de uma mudança comportamental que venha de cima para baixo, mas que, sobretudo, a sociedade entenda que todos são livres e iguais, dignos de igual respeito e consideração e que nenhuma mulher pode ser responsabilizada por ter sofrido uma agressão, muito menos algo que possa legitimar a conduta violenta de um homem pelo comportamento da mulher. As pessoas são livres e iguais, nenhum comportamento de violência é admitido.
– Proex: Fale-nos sobre o processo de elaboração do memorial.
– Bruno Stigert: Todo o trabalho de elaboração do memorial, feito por muitas mãos, gerou o livro “Feminicídio e Imunidades Parlamentares: uma análise do caso Márcia Barbosa versus Brasil na Corte IDH”. Nosso capítulo é o oitavo, junto com o núcleo da UFRJ. No Brasil vigora o sistema de imunidades de pessoas que ocupam cargos eletivos e representativos. Como Aércio Pereira de Lima era deputado estadual e não foi preso em flagrante, o processo foi enviado direto para a Assembleia Legislativa da Paraíba onde ele trabalhava. A Assembléia se recusou a abrir o caso duas vezes. Após Aércio sair do mandato legislativo, o processo continuou e, depois de vários recursos, saiu a sentença, mas o acusado morreu logo em seguida. O então deputado foi protegido por um aparato cruel que demonstrou total negligência. Tinha todos os indícios do crime, mas o nosso sistema não quis atuar, provavelmente, porque era um homem branco rico e parlamentar. Fica claro em nossa conclusão uma disparidade na política de gênero no país. Temos um sistema de impunidades. É um exemplo de uma violência de gênero politizada. Durante o julgamento do crime na Assembleia Legislativa da Paraíba esteve presente uma única mulher, o restante sequer tinha como sentir empatia pela lente do gênero, prevalecendo o olhar masculino e heteronormativo.
– Proex: É bastante significativo ter a participação de duas universidades públicas em uma decisão de tamanha relevância. Na sua avaliação, como esse trabalho pode reforçar a compreensão da sociedade acerca do papel da extensão universitária, ou seja, da atuação das universidades públicas junto à sociedade em geral?
– Bruno Stigert: Hoje a extensão caminha para tornar-se curricular. É uma obrigação de todas as unidades oferecer uma retribuição à sociedade em todas as áreas dentro da Universidade. A Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência receber proposta de um órgão internacional significa que, de algum modo, ela entrega à sociedade, já há algum tempo, trabalhos com excepcionais resultados. A Corte Interamericana poderia demandar de grandes escritórios do mundo, mas preferiu demandar das universidades públicas com jovens talentosos, com professores capazes de orientá-los e entregar um produto de qualidade que deixasse evidente a reflexão sobre os direitos humanos no Brasil. Isso também traz para toda a população uma compreensão de que a Universidade está do lado dela, está sempre de portas abertas para a sociedade.
– Proex: Fale-nos sobre a equipe do projeto de extensão.
– Bruno Stigert: A equipe foi montada no primeiro ano do núcleo, em 2018, só com voluntários, não tinha bolsistas. Foram 26 voluntários. Em seguida, tivemos duas bolsas e mais 20 voluntários. Somamos ao longo de três anos sessenta extensionistas. São alunos que têm um projeto de vida social e entregam-se de corpo e alma a esse projeto de extensão. Todos os anos tivemos representatividade de pessoas negras, da comunidade LGBTQIA+, permitindo à clínica prestar atendimento de qualidade. Não tem outro segredo para a realização e o sucesso no processo: pluralidade de pessoas, pluralidade de diversidade e, consequentemente, um trabalho bem feito.
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