Maria dorme bem, tem uma alimentação saudável, se exercita regularmente e está com a pressão arterial e o colesterol normais. Apesar de todos esses cuidados, está obesa. Na sua opinião, como anda a autoestima dela? Está satisfeita com seu corpo? E o nível da sua atividade física? Respostas negativas a perguntas como essas com base apenas nos números da balança e no tamanho corporal caracterizam o chamado ‘estigma de peso’, algo muito comum entre aqueles que justamente deveriam combatê-lo: os profissionais de saúde.
Atentos a esse contexto, um estudante e um professor da Universidade Federal de Juiz de Fora em Governador Valadares (UFJF-GV) realizaram um estudo com discentes dos cursos de Medicina, Odontologia, Farmácia, Nutrição, Fisioterapia e Educação Física do campus, e concluíram que o comportamento também está presente entre os futuros profissionais. O estigma de peso foi constatado em 85 dos 213 participantes. E mais: ele é maior nos homens e entre aqueles que estão dentro do peso.
Todos esses dados estão em ‘Estigma de peso corporal em universitários da área da saúde: um estudo do tipo vinheta’, trabalho de conclusão do curso de Educação Física de Wedsley dos Santos Silva André.
Metodologia e conclusões do estudo
Inicialmente, as mais de duas centenas de estudantes que participaram da pesquisa responderam um questionário on-line com um conjunto de perguntas ligadas a uma escala que avalia o estigma de peso.
Em seguida, os participantes foram aleatoriamente divididos em três grupos, sendo que cada um deles recebeu a descrição de um caso hipotético e com base nele respondiam a outra série de questões. Trata-se da história de Maria, 28 anos, que procura um posto de saúde para atendimento, e cujos indicadores (qualidade do sono, alimentação, pressão arterial, colesterol e prática de atividade física) são considerados bons.
O caso apresentado para os três grupos foi idêntico, à exceção de um pequeno detalhe: o peso de Maria. Na história apresentada ao grupo A, ela foi descrita como uma pessoa de baixo peso. Já no B, ela apresentada o peso normal. E no grupo C, a paciente tinha peso elevado, sobrepeso ou obesidade.
Professor do curso de Educação Física da UFJF-GV e orientador do trabalho, Pedro Berbert explica o resultado da pesquisa. “O simples fato da pessoa ter um excesso de peso gera nos futuros profissionais de saúde o estigma de peso sobre essa pessoa como se ela tivesse um menor cuidado com a saúde, menor satisfação com a vida, menor autoestima, embora a vinheta [como é chamada a descrição do caso] destaque com muita clareza que todos os indicadores que a dona Maria tem são muito bons. O mesmo aconteceu com alguns casos com quem leu a vinheta de baixo peso também”, detalha.
Diante dos resultados do trabalho, Berbert defende uma atuação mais assertiva dos professores junto aos estudantes. “Atitudes negativas frente a obesidade constituem barreira para o atendimento integral à saúde de pessoas com corpos maiores. Se formos capazes de conscientizar os estudantes desta geração, teremos maiores chances de sucesso quanto a redução do estigma de peso entre profissionais de saúde. Explicar a estudantes da área da saúde o conceito de estigma do peso, suas fontes, forma de perpetuação na área da saúde, prejuízo aos pacientes com obesidade, entre outros aspectos, parece ser uma necessidade atual. Tais conteúdos poderiam ser abordados em disciplinas da formação destes estudantes”, afirma o docente.
O autor do trabalho tem opinião semelhante à de Berbert. “Nosso estudo apontou a presença de crenças estigmatizantes em universitários da área da saúde, o que reforça a necessidade da abordagem e discussão do tema durante a graduação, para que quando formados esses ofereçam um tratamento mais humanizado”, conclui Wedsley Santos.
Estigma prejudica atendimento de pessoas com obesidade
Essa criação de estereótipos ou discriminação com base no peso corporal é visto como um entrave ao atendimento e tratamento de pessoas com obesidade por pesquisadores da área e pela própria Organização Mundial da Saúde (OMS). Inclusive, o dia 27 de setembro é mundialmente dedicado ao combate ao estigma.
Para termos uma ideia do problema, a Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral), por exemplo, destaca em seu site que “quanto maior é o estigma do peso na juventude, maior é a presença na vida adulta de transtornos alimentares (principalmente a compulsão alimentar), sintomas depressivos, ansiedade e insatisfação com a imagem corporal.”
Os prejuízos do estigma de peso também são destacados por Pedro Berbert. “Está relacionado a piores desfechos e compromete a saúde mental das pessoas com excesso de peso. Inclusive, é uma das barreiras para tratamento das pessoas com obesidade pelo mundo, já que elas não se sentem incluídas nos tratamentos pelos profissionais de saúde, pois muitas vezes, ao contrário do que é esperado, esse profissional é a fonte do estigma para esse paciente”, defende.
O tema, inclusive, motivou uma declaração conjunta de consenso internacional para acabar com o estigma da obesidade. No documento, assinado por mais de 30 pesquisadores e publicado no site da Nature Medicine, em março do ano passado, tem-se a dimensão do estigma:
“Frequentemente percebidos (sem evidências) como preguiçosos, gulosos, sem força de vontade e autodisciplina, os indivíduos com sobrepeso ou obesidade são vulneráveis ao estigma e à discriminação no local de trabalho, educação, serviços de saúde e na sociedade em geral. O estigma de peso pode causar danos consideráveis aos indivíduos afetados, incluindo consequências físicas e psicológicas. O impacto prejudicial do estigma de peso, no entanto, se estende além dos danos aos indivíduos. A visão predominante de que a obesidade é uma escolha e que pode ser totalmente revertida por decisões voluntárias de comer menos e se exercitar mais pode exercer influências negativas nas políticas de saúde pública, acesso a tratamentos e pesquisas”, frisa a declaração.