O ciúme precede a traição e, se sobre o casal Capitu e Bentinho pairam dúvidas quanto ao adultério, Machado de Assis não dissimulou os ciúmes do marido na relação. É ele, o ciúme, o motor de sua obra-prima “Dom Casmurro” e, também, de muitos outros de seus escritos. A tese da centralidade do ciúme nas narrativas machadianas é defendida no livro “Um estudo do ciúme em Machado de Assis: as narrativas e os seus narradores” (Editora Dialética, 176 páginas), que o escritor e doutor em literatura Darlan de Oliveira Lula lança nesta quinta, dia 16, às 19h, em live transmitida pelo canal do Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm). Participam do evento, ainda, o prefaciador do livro, Leandro Ribeiro, e o jornalista Mauro Morais, que mediará a mesa. De linguagem clara e acessível, a obra analisa a produção de um dos mais importantes autores da literatura brasileira, destacando dois de seus livros, “Ressurreição”, de 1872, e “Dom Casmurro”, de 1899.
“Quando Machado aborda o ciúme em vários de seus contos, e em seus romances, ele vai além e trabalha isso do ponto de vista do criador. É a partir dessa construção que suas narrativas ganham força, porque o leitor começa a mergulhar na obra segundo os alicerces narrativos construídos pelo narrador. E Machado tem a exata noção disso; ele sabe os meandros a serem trilhados para que a leitura ganhe em expectação e suspense, angariando cada vez mais leitores. Ao mesmo tempo em que é uma enorme reflexão sobre o próprio ser humano e como ele lida com suas angústias, seus traumas, seus tormentos interiores”, pontua Darlan sobre um ciúme que ultrapassa o status de sentimento para se tornar procedimento. “É uma ferramenta para que a narrativa ganhe em substância, se torne pujante, instigante aos olhos do leitor. Assim, o ciúme deixa de fazer parte da história em si, para se tornar personagem principal na construção da narrativa.”
Ainda que central na literatura machadiana, o ciúme de que fala o pesquisador ganha contornos particulares em cada uma de suas narrativas. O Bruxo do Cosme Velho, como ficou conhecido, seleciona com método e perspicácia a voz que guiará suas histórias. São esses narradores, que ora revelam e ora escondem fatos, que retratarão o ciúme na perspectiva do envolvimento do leitor, permitindo ou não que ele acesse a integralidade das cenas. “Pode ser um narrador onisciente (quase um deus demiurgo); um que participa da história diretamente; o próprio ciumento; enfim, cada um deles vai se comportar de uma maneira dentro da narrativa. E aí vem a maestria do nosso bruxo, porque ele consegue dar vida a cada uma dessas personagens que estão descritas e criadas no papel. O ápice é quando, na leitura, Machado consegue suspender o leitor a tal ponto que, se bobear, o próprio leitor vira, sem saber, uma marionete nas mãos do escritor”, observa Darlan, organizador da coletânea “Machado de Assis: atemporal”, lançada pelo Selo Mamm, do Museu de Arte Murilo Mendes, em 2012.
Um microcosmo da sociedade
Em prefácio de “Um estudo do ciúme em Machado de Assis: as narrativas e os seus narradores”, Leandro Ribeiro destaca que tanto Félix e Lívia, de “Ressurreição”, quanto Bentinho e Capitu, de “Dom Casmurro”, são casais formados por homens inseguros e mulheres singulares “que ajudam a compreender muito da alma humana nesse aspecto tão demasiado humano, o ciúme”. Para traçar sua análise, Darlan de Oliveira Lula lança mão das teorias do filósofo russo Mikhail Bakhtin. “Foi fundamental para que tivéssemos a percepção de que, embora Machado tenha se utilizado, muitas vezes, de narradores parciais e repletos de intenções de convencimento dentro da narrativa, conseguiu desenvolvê-la criando na estrutura da narrativa recursos linguísticos que deixam enormes brechas e lacunas a serem preenchidas por um leitor mais perspicaz, reproduzindo na obra um microcosmo do que é a sociedade: plural, multifacetada e complexa”, explica.
Nascido na Academia, no doutorado em literatura comparada feito na Universidade Federal Fluminense, a UFF, o livro, como ressalta o prefaciador, não reproduz um “academês”. Pelo contrário, mostra-se interessado em fazer-se entender, como uma investigação sensível e delicada. Parte disso se deve ao fato de o próprio pesquisador ser, também, um contador de histórias. Autor de dois romances “Viera tarde” (2005) e “Desvios” (2008), Darlan também escreveu os poemas de “Casa de madeira” (2015), além das coletâneas de contos “Pontos, fendas e arestas” (2002) e “Todos os dias” (2016). “Com Machado de Assis e com a análise em torno de sua escrita, eu pude perceber melhor como escrever meus próprios livros”, reconhece.
O livro “Um estudo do ciúme em Machado de Assis: as narrativas e os seus narradores” pode ser adquirido pelo site da Editora Diáletica.