A preocupação com a contínua restrição orçamentária à Ciência, Tecnologia & Inovação (CT&I) e à Educação deu o tom da cerimônia de abertura da 73ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O evento ocorreu neste domingo (18/7) de forma virtual, com transmissão pelo canal da SBPC no Youtube, dando início a uma intensa programação que se estenderá até o dia 24 de julho. A maioria dos depoimentos de autoridades e personalidades convidadas ressaltou a redução dos recursos do orçamento governamental para bolsas de estudos e a infraestrutura necessária à produção da pesquisa científica.

“Os cortes sucessivos no orçamento de CT&I nos últimos anos levaram o País a uma situação inaceitável”, afirmou o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. “A ciência vem sendo subfinanciada há bastante tempo, os editais cada vez em menor número e os pesquisadores cada vez mais impossibilitados de desenvolver todo seu potencial”, completou Edward Madureira Brasil, reitor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes).

Demonstrando atenção às demandas da comunidade acadêmica e científica, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), Marcos Pontes, reconheceu em seu discurso a dificuldade do momento marcado por restrições, inclusive orçamentárias dentro do MCTI. ”Ao mesmo tempo ficou demonstrada a importância da ciência como única arma para vencermos a pandemia e para a recuperação do País através de tecnologia e inovações”, afirmou.

O ministro Pontes ressaltou a diferença entre o orçamento do MCTI e o do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), sendo que o primeiro tem sido “gradualmente reduzido” e o segundo está retido em uma reserva de contingência.

“Precisamos trabalhar juntos para recuperar o orçamento do MCTI para 2022 e voltar de forma crescente aos níveis adequados desse orçamento” declarou Pontes. Sobre o FNDCT, ele disse que está entre as preocupações do Ministério a liberação “o mais rápido possível desses valores”, e contou que tem mantido conversas com o Ministério da Economia – órgão que está retendo os valores referentes ao fundo -, mas que isso não depende dele, e sim de “outros fatores”.

Em discurso ao final das apresentações, o presidente da SBPC, Ildeu de Castro Moreira, disse que o orçamento para a ciência é tema de enorme preocupação. Ele lembrou o êxito da luta da SBPC junto ao Congresso Nacional pela liberação dos recursos do FNDCT e pediu maior empenho do ministro Pontes na defesa do cumprimento das leis por parte do governo. “Queremos que o ministro tenha uma atitude muito mais firme, em particular diante do Ministério da Economia, que tem uma política absolutamente destrutiva, não só para a ciência, mas de passar a boiada em vários domínios da vida brasileira”, afirmou.

Moreira também destacou os compromissos da SBPC e de todas as entidades da sociedade civil e instituições do País com a defesa da democracia, que está sendo ameaçada. “Recentemente, a SBPC divulgou a ‘Carta em defesa da democracia’, em que nós dissemos que a SBPC se manifesta contra as ameaças recentes ao Estado Democrático de Direito no Brasil. Ao longo da sua história, a SBPC, assim como outras entidades civis brasileiras, sempre pautaram sua atuação em defesa da ciência, da educação, do meio ambiente, da saúde, dos direitos humanos e da democracia. Portanto não aceitaremos esse retrocesso e denunciaremos as tentativas de não cumprimento da Constituição brasileira. A SBPC e essas entidades não se intimidarão com declarações, gestos ou ações que ameaçam nossa democracia”, afirmou o presidente da SBPC.

Além de Pontes, outros representantes do governo federal que falaram na abertura foram o presidente do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Evaldo Vilela, e a presidente da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Cláudia Mansani Queda de Toledo. Ambas as instituições completam 70 anos este ano e serão homenageadas na programação da Reunião Anual.

A luz da ciência

O papel da ciência na solução da crise sanitária, social e econômica pela qual passa o País esteve em praticamente todos os discursos na abertura da 73ª Reunião Anual, bem como críticas ao governo federal pela condução da pandemia do coronavírus.

Na visão do reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcos Vinícius David, a instituição – parceira da SBPC na organização da reunião – representa uma rede de universidades públicas que exercem no Brasil um papel absolutamente fundamental para o desenvolvimento social e econômico. Afirmou que, orientada pelo lema “lumina spargere” (espargir luz em latim), a UFJF cumpre seu papel de “iluminar a sociedade contra qualquer forma de obscurantismo”. “É com nosso conhecimento, com nossa ciência que vamos oferecer luzes para a sociedade enfrentar momentos tão difíceis”, declarou.

A prefeita de Juiz de Fora, Margarida Salomão, que também é professora emérita da UFJF, reiterou a crítica ao obscurantismo que permeia o País nos dias atuais, definido por ela como “trágico”, tanto quanto a pandemia. Salomão relembrou a 29ª Reunião Anual da SBPC, realizada em 1977, cuja realização foi impedida duas vezes pela ditadura militar, primeiro em Fortaleza e, depois, na Universidade de São Paulo (USP), até ser sediada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), evento que ela testemunhou pessoalmente por ter participado apresentando sua dissertação de mestrado.

“As atitudes obscurantistas não apenas negam a ciência e a racionalidade, mas obstruem a compra de vacinas, cortam verbas de pesquisa e desenvolvimento tecnológico, ameaçam o direito da população à educação superior e colocam em risco a autonomia acadêmica e de gestão das universidades”, frisou.

Paulo Beirão, presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), chamou a atenção para o desmonte das instituições de CT&I construídas ao longo de décadas de trabalho e dedicação dos cientistas, comprometendo todo o futuro do Brasil. “Isso em um momento em que mais se reconhece o valor da ciência”, afirmou Beirão.

Fuga de cérebros

A presidente da Associação Nacional da Pós-Graduação (ANPG), Flavia Calé, apontou a construção de uma autonomia tecnológica e a retomada de um projeto de valorização da carreira cientifica como dois dos grandes desafios da comunidade científica hoje.

Para ela, esse movimento seria importante para “salvar” os jovens que o Brasil formou nos últimos anos e não consegue apresentar perspectivas. “É uma geração que não tem empregabilidade, não tem alternativa de concurso público ou de seguir na carreira acadêmica, que tem buscado caminhos como a fuga de cérebros, sair do País para buscar oportunidades, que tem mudado de rumos, desistido da carreira cientifica, e isso é muito grave porque são pessoas que estão em plena capacidade de contribuir e produzir no nosso país e não conseguem por não ter oportunidade.”

Representando a Comissão Arns de Direitos Humanos, o cientista político André Singer tomou o exemplo da pandemia e das populações indígenas para demonstrar como o obscurantismo prejudica os direitos humanos no Brasil. “São dois exemplos que indicam a necessidade de nós reforçarmos a nossa unidade para reverter esta atual situação e garantirmos que a ciência brasileira possa continuar a progredir e os direitos humanos possam voltar a uma trajetória de preservação”, afirmou Singer.

Dois parlamentares representaram o Congresso Nacional na abertura da Reunião Anual, a Deputada Federal Ângela Amim (PP/SC) e o Senador Jacques Wagner (PT/BR). Ângela Amim destacou o tema da reunião deste ano, “Todas as ciências são humanas e essenciais à sociedade”. “Me fez refletir sobre a necessidade de que o conhecimento gerado pelas ciências chegue às pessoas e torne possível o nosso avanço como civilização.”

O Senador Jacques Wagner (PT/BR) criticou o governo pela “natureza obscurantista, autoritária, que não tem solidariedade com os seres humanos, revelada mais ainda durante a pandemia”, e frisou sua participou da aprovação da Lei 177 que protegeu o FNDCT da reserva de contingência, lei agora desrespeitada. “Vamos continuar lutando para valorizar e injetar recursos para que a gente possa voltar a ter as bolsas e o investimento em ciência e tecnologia que já tivemos.”

No final da sessão de abertura, o Coral da UFJF trouxe uma interpretação de “Angélica”, composição de Chico Buarque e Miltinho, em homenagem à estilista Zuzu Angel, assassinada na década de 1970. Zuzu, cujo centenário de nascimento é celebrado este ano, foi uma vítima da repressão no período da ditadura militar, por denunciar, inclusive através da moda que a tornou conhecida no exterior, o desaparecimento e a morte de seu filho Stuart Angel.

Assista à cerimônia de abertura da 73ª Reunião Anual na íntegra, no canal da SBPC no YouTube.

Jornal da Ciência