“Não se é mais digno ou menos digno pelo fato de se ter nascido mulher, ou homem”. A frase é do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, e faz parte do seu histórico voto – seguido na íntegra por outros seis ministros – proferido na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277 e na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, que regulamentaram a união estável homoafetiva. A decisão, que tem caráter vinculante (quando precisa ser seguida por todos os órgãos do judiciário), completou dez anos no último mês de maio.
E para explicar os principais impactos e contribuições dessa decisão, que é resultado de muita luta e motivo de orgulho para a comunidade LGBTIA+, conversamos com a professora do Departamento de Direito do campus da Universidade Federal de Juiz de Fora em Governador Valadares (UFJF-GV), Nara Carvalho. A docente integra o Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH), um programa de extensão que possui como um de seus eixos de atuação “direitos humanos e diversidade”.
Site UFJF-GV: Quais as principais contribuições da decisão do STF em relação à dignidade e demais direitos dos LGBTQIA+?
Nara Carvalho: A partir do julgamento conjunto da ADPF 132 e da ADI 4277, obteve-se uniformização jurisprudencial, com caráter vinculante [precisa ser seguido por todos], em prol da união estável homossexual. Trata-se de reconhecer o direito fundamental à constituição familiar a todas as pessoas, independentemente de gênero e sexualidade, em afirmação aos princípios jurídicos de liberdade na igualdade. A decisão contribui, assim, a uma atuação jurídica inclusiva, sensível à pluralidade de vivências, pela qual não cabe ao direito conformar/impor identidades pessoais, estabelecendo hierarquia entre elas.
Antes da decisão, como os casais homoafetivos formalizavam a união?
Antes disso, o reconhecimento da união estável homossexual via Judiciário variava de acordo com o entendimento do magistrado à frente do caso. Casos semelhantes eram julgados de maneira diferente, ora sob a compreensão de impossibilidade jurídica do objeto (de modo que a união estável diria respeito apenas a casais heterossexuais), ora sob a compreensão de que a união estável consiste em formato jurídico de família a ser vivenciado por casais, do mesmo sexo ou não.
Quais os principais argumentos que embasaram a decisão do STF?
O julgamento do STF em prol da união estável homossexual se deu por unanimidade entre os ministros, sendo apostos uma série de argumentos, que se relacionam. Alguns deles: não há conceito jurídico de família estritamente fixado na Constituição. Não é possível, por exemplo, pelo texto constitucional, lastrear a família na reprodução; o artigo 226 da Constituição deve ser lido a partir de um rol exemplificativo. Isto é, ali são tratadas três possibilidades de vivência familiar, mas não as esgotando. Tal leitura há de ser conjugada com outros direitos fundamentais, destacadamente a liberdade e a igualdade; liberdade e igualdade entre as pessoas implicam igual direito à formação familiar, a partir da autonomia dos seus membros (cláusula pétrea), independentemente de sexo e orientação sexual; a pluralidade consiste em valor sócio-político-cultural inserida na Constituição brasileira, que veda a discriminação das pessoas em razão do sexo e da orientação sexual, inclusive para fins de vivência familiar para fins de direito.
E aqueles que se opõem ao entendimento do STF, o que argumentam para a negativa do direito dos homossexuais à união estável?
Três ordens de argumentos são comumente apresentadas a fim de contestar a família homossexual, perpassando, inclusive, o fenômeno religioso. O Brasil é um país majoritariamente cristão, cujas religiões, em sua maioria, compreendem a homossexualidade como pecado, de modo que cabe as minorias acatarem a percepção de mundo e a cultura vivenciada pela maioria; a família tem feição necessariamente procriativa, cabendo às pessoas se curvarem à ordem natural. A sociedade é mantida através da reprodução humana, que se dá entre um homem e uma mulher; não se trata de discriminar homossexuais, mas de reconhecer as diferenças que lhes caracterizam: não há reprodução natural entre pessoas do mesmo sexo; o artigo 226 da Constituição brasileira deve ser lido restritivamente, havendo, no Brasil, apenas três modalidades de família para fins de direito: casamento, união estável homossexual e família monoparental.
E a questão do casamento, ainda fica adstrita aos heterossexuais? Existe algum movimento para a equiparação?
Casamento e união estável são formatos jurídicos de família a serem escolhidos/vivenciados pelos casais, independentemente do sexo e do gênero. A uniformização de entendimento do STF em prol da união estável homossexual, sob o pressuposto de que o direito fundamental à constituição familiar é de todos, reforçou entendimento de que cabe aos casais, homossexuais ou não, entrarem com o procedimento cartorário de habilitação, requerendo a realização do casamento, se assim o quiserem. Inclusive porque a Constituição prevê que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento (art. 226, §3º). Dias após a decisão do STF, foram realizados casamentos homossexuais no país. Em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça expediu a Resolução 175, vedando expressamente a recusa da habilitação, celebração do casamento civil e conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Embora seja um marco jurídico importante quanto aos direitos LGBTQIA+, Carvalho chama a atenção para o fato de a união estável homoafetiva ainda não estar superada. Segundo a docente, tramita no Congresso Nacional, por exemplo, um projeto de lei denominado ‘Estatuto da Família’ cujo principal foco está na “percepção de que a família, para fins de direito, é a heterossexual” e que, portanto, ao regulamentar a união estável entre pessoas do mesmo sexo o STF “extrapolou o exercício judicante, passando a atuar como legislador”. Enfim, como todas as conquistas dos LGBTQIA+, esse é mais um exemplo de que o orgulho caminha lado a lado com a luta e a vigilância permanente.