Fotografia e manipulação digital: a obra “Amor é a grande desilusão” é de Thiago Berzoini (Foto: Divulgação)

A densa palavra clariceana, com sua extraordinária capacidade para revolver e revelar o mais íntimo do humano, é o elemento provocador da mostra “Renda-se como eu me rendi – 100 anos de Clarice”, lançada em formato virtual pela Pró-reitoria de Cultura (Procult) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Vinte e oito artistas apresentam seus trabalhos, inspirados em fragmentos selecionados da obra da escritora, cujo centenário foi celebrado em dezembro de 2020. 

A exposição, montada no Espaço Reitoria, no Campus da UFJF, no momento não pode ser visitada pessoalmente, devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19. O resultado é um painel diversificado de obras visuais de diferentes linguagens artísticas, incluindo pinturas, escultura, cerâmica, fotografia e técnicas mistas, que buscam dialogar com trechos de contos e romances de Clarice Lispector. As soluções encontradas pelos artistas vão do figurativismo mais explícito ao puro abstrato. 

Na obra de Rodrigo Durço, as palavras de Clarice se transformam em linhas de uma caligrafia em nanquim que ergue sobre o papel perfis de edifícios, torres, ruas, quarteirões e montanhas. Extraídos de contos do livro” Felicidade Clandestina”, todos os trechos foram transcritos manualmente ao longo de um mês. “Cada trecho foi intencionalmente adicionado para que a obra fosse composta apenas pelo que senti. Peguei emprestado de Clarice várias passagens para que na obra elas falassem de mim, dos meus sentimentos. Desenhei o texto da Clarice ou escrevi meus desenhos.” 

A cidade que surge é uma Juiz de Fora percebida como um mar de lembranças. “Cidades, construções e paisagens são alguns dos temas que mais desenho. Não senti que dessa vez seria diferente. Ainda mais porque foi aqui em Juiz de Fora que muitos dos sentimentos descritos pelos trechos desenhados foram provocados, sentidos, chorados.” Durço viu no edital de seleção “uma oportunidade de tentar expressar algo e de experimentar algum tipo de alívio” em relação a esse momento de sensibilidade emocional, potencializada pelo isolamento e pela pandemia. O artista se identificou plenamente com Clarice: “Ela expõe tudo cru, sem filtro. A compilação dos trechos desenhados também está desse jeito: clara, direta, sem rodeio”, afirma, notando, que, assim como numa vista panorâmica, só se achará sentido se o : de sua obra observar bem cada palavra.

Amor e ruína

Foi numa encruzilhada próxima a sua casa, a caminho do mercado, que Thiago Berzoini encontrou o tema de sua obra. Alguns sacos de lixo pretos e, junto deles, um quadro negro com a inscrição “Bem-vindo de volta, meu amor!” chamaram sua atenção: “A disposição dos sacos de lixo, que, dependendo de como olhar, parecem um coração (caricato), a mensagem no quadro em cima do lixo e a encruzilhada (encontro onde podem ser escolhidos vários caminhos). Era uma obra pronta esperando alguém registrar, e assim eu fiz.”  

Quando saiu o edital para a mostra, Berzoini buscou na obra de Clarice um trecho que pudesse ser associado à foto que fizera, e, ao encontrá-lo em um fragmento de “A Legião Estrangeira – “(…) amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor” – foi como se a imagem tivesse sido feita para aquele trecho. A degradação e a efemeridade das relações, principalmente em seu aspecto afetivo máximo, o amor, é um dos temas que mais interessam a Berzoini.

“O amor como um aspecto de ruína. Não o amor-sendo, mas o amor quando se encerra. No trecho que escolhi, Clarice diz que ‘amor é finalmente a pobreza’, e pobreza é ausência, é miséria, e também ‘querer ter’”, analisa. Há, como lembra Berzoini, uma carga de ironia nessas “boas-vindas” descartadas numa pilha de sacos de lixo, no meio fio da calçada, a saudar o observador que passa. A imagem em preto e branco foi uma escolha do fotógrafo, em busca de “evocar um aspecto melancólico, […] importante para a obra acentuar essa luta entre desilusão e ironia”.

A atração da palavra

Peça em cerâmica de Júlia Vitral (Foto: Divulgação)

Três segmentos literários de “Uma Aprendizagem” ou “O Livro dos Prazeres” inspiraram Julia Vitral, que os imprimiu em sua obra cerâmica, técnica de processamento do barro que é a matéria-prima cotidiana de seu trabalho artístico. Segundo ela, o que chamou sua atenção nos trechos são as “palavras que dizem tanto, sem jamais haver uma revelação completa”. Para a artista, ao expressar que prefere ‘a largueza tão ampla e livre e sem erros que era o não-entender’, Clarice traduz o próprio direito à liberdade de criação: “Algo escapa, mesmo com muito empenho e trabalho. Algo que é sem garantias do ser bom ou ruim, ser bonito ou feio, ser arte ou não.”

Leitora de Clarice desde os primeiros contatos com a autora no ensino médio, Julia está sempre retornando à obra clariceana. “Sempre há uma leitura nova, ou uma nova leitura de um mesmo texto”, ressalta a artista visual que se diz atraída pela palavra. “A grande questão para mim é como colocar em imagem, em um trabalho, algo que já está dado. Como imprimir o escrito de outro, sem uma cola ou sem ser literal, e ainda transformar essa palavra impressa em uma imagem visual e não oral? Isso é uma peleja para muito tempo.”  Em sua opinião, proposta como a da mostra sobre Clarice é “dos diálogos mais bonitos que existem, porque escapa a quem lê e escapa a quem vê, porém, deixa um resto criador e restaurador nos seres de linguagem que somos. O que faremos desse resto, cabe a cada um deixar falar”.

Processo artístico

Sinestesia com a palavra: para João Gabriel Cendretti, autor de Chro.nos (ou a virtualidade do ser), objeto em porcelana e parafina, isso é parte de seu processo artístico. “Minha produção visual está sempre atrelada à capacidade imaginativa do pensar, por muitas vezes crio quando estou lendo”, informa, acrescentando que os fragmentos literários de “O banho”, capítulo de “Perto do Coração Selvagem”, retratam algo que ressoa nele, como na personagem em momento de solidão, ao perceber a si mesma e toda a virtualidade do ser. “Quando fazemos coisas, não nos vemos. Quando falamos não nos ouvimos, por isso, essa obra parte de algo comum, como tomar uma xícara de café e, de repente, toda existência de si é impregnada naquela atitude, impregnada como prazer, como memória, como solidão, como você mesmo, uma impressão.” O trabalho de Cendretti faz parte de uma série de obras tridimensionais chamada e.cos (ou objetos oníricos) que pretende pesquisar a materialidade do abstrato para construir narrativas sensoriais sobre temas como culpa, memória e dor.

A profundidade do pensamento criativo também mobiliza a artista Paloma Carmelita, autora de Fragmento 6: de ser atingido, obra que recorre a um trecho do livro “Água Viva” para explorar “os limites do que é possível” em seu processo de experimentos em busca de se reconectar com seu corpo. A artista usa o corpo como pincel para imprimir formas no papel com guache. Depois realiza bordados com lã e fio dourado, além de vela derretida e tinta acrílica, assim produzindo uma estrutura alinhavada. A autora está interessada em saber que percepções esse estímulo visual provoca. Como em “Água Viva”, ela sabe que “O arco pode disparar a qualquer instante e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo”. 

Estes e outros trabalhos podem ser conferidos na mostra virtual de “Renda-se como eu me rendi – 100 anos de Clarice”, disponível em vídeo no canal da Pró-reitoria de Cultura no YouTube.

Outras informações: cultura.ufjf@gmail.com