Meio milhão de brasileiros mortos pela Covid-19. A pandemia, que dilacerou vidas, histórias e famílias ao redor do mundo, mostrou sua versão mais cruel e letal no Brasil. Dentre as inúmeras razões da tragédia humanitária vivida no maior país da América do Sul, três são indiscutivelmente apontadas por cientistas das mais diversas áreas: a responsabilidade do atual Governo Federal; a natureza tardia das ações de enfrentamento à pandemia; e a política negacionista adotada institucionalmente e por parte da sociedade.
“Tais aspectos podem ser observados nos atos normativos e de governo da União e também nas propagandas contra a saúde pública. Do ponto de vista político, se não tivéssemos essa tríade, teríamos garantido a utilização da força máxima do SUS em todas as suas dimensões (prevenção, assistência, cura e reabilitação), bem como a orientação e organização da sociedade em torno das medidas de prevenção”, afirma a professora do Departamento de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Danielle Teles da Cruz.
As conclusões são compartilhadas pela cientista política Marta Mendes da Rocha, que coordenou o projeto “Os governos municipais frente ao coronavírus“. A iniciativa do Núcleo de Estudos sobre a Política Local (Nepol) da UFJF contou com a colaboração de vários pesquisadores nas suas três frentes de trabalho. Na primeira delas, participaram mais de cem cientistas – em sua maioria da área das Ciências Sociais, e instituições de ensino superior e centros de pesquisa de todas as regiões do país. Juntos, publicaram 87 análises sobre as medidas de combate à pandemia adotadas pelos governos de 70 municípios brasileiros.
De acordo com Marta, prefeitos e prefeitas enfrentaram muitos obstáculos. Entre eles, principalmente, as reações negativas de grupos locais contrários ao distanciamento social. “Os executivos também tiveram que enfrentar a oposição do próprio Presidente da República, que primeiro tentou usurpar de Municípios e Estados suas competências na área da saúde; depois, tentou culpar prefeitos e governadores pelo agravamento da crise econômica.” O recorrente encorajamento do Presidente ao desrespeito aos protocolos de segurança também contribuíram para o relaxamento das medidas de controle.
O que poderia ter sido (e ainda pode ser) feito
As pesquisadoras são unânimes, também, ao refletir sobre quais medidas deveriam ter sido tomadas para que o país não chegasse a esse número de mortes tão expressivo. A centralidade das ações, nesse sentido, é apontada para o Sistema Único de Saúde (SUS) – o maior sistema público de saúde do mundo em termos de abrangência e cobertura.
“(O Presidente) colocou em dúvida a eficácia dos imunizantes, criou dificuldades para a obtenção de insumos e atrasou o quanto pôde o processo de imunização no país”
“O país não investiu em testagem em massa e rastreio de contato. Os profissionais da Atenção Primária à Saúde, com o saber acumulado no enfrentamento a outras pandemias como Zika e Chikungunya, poderiam ter desempenhado um papel fundamental no sentido de identificar e isolar casos”, avalia Marta da Rocha.
Segundo ela, a pesquisa do Nepol, em convergência com várias outras análises, mostra que o Governo Federal não forneceu parâmetros claros de ação para as instâncias subnacionais. “Ao contrário, criou obstáculos às medidas de distanciamento implementadas por prefeitos e governadores, fomentando uma relação de conflito e competição, ao invés de liderar e coordenar o enfrentamento à pandemia.”
Marta lembra, ainda, do evidente atraso na compra das vacinas. “(O Presidente) colocou em dúvida a eficácia dos imunizantes, criou dificuldades para a obtenção de insumos e atrasou o quanto pôde o processo de imunização no país”, criticou a cientista política.
A colega Danielle Teles concorda com as premissas elencadas e argumenta que o Brasil poderia ter estado minimamente preparado se tivesse considerado os alertas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e as experiências de Ásia e Europa nos primeiros meses de 2020. “Perdeu-se um tempo considerável e muito precioso”, pondera.
Teles também listou algumas iniciativas que poderiam (e ainda podem) ser adotadas. Entre elas, evidentemente, um planejamento com base na ciência e na perspectiva da defesa da vida, considerando a necessidade de um Ministro da Saúde que entenda minimamente o funcionamento do SUS. Outro ponto destacado é a urgência de uma comunicação social em saúde efetiva para adoção das medidas de prevenção e fomento de consciência sanitária, com apresentação fidedigna dos dados e transparência das ações. E, ainda, expansão de leitos de UTI com adoção de fila única, reorganização e fortalecimento da Atenção Primária à Saúde; e integração das ações de vigilância em saúde.