A descrença em informações repetidamente comprovadas pela ciência não é algo inédito no Brasil, tampouco em outros países. Esse questionamento de fatos legítimos é chamado de negacionismo e, antes de ser um dos mecanismos responsáveis pela marca de 500 mil brasileiros mortos pelo coronavírus, já era velho conhecido de estudiosos em campos como o da Comunicação e da História. São justamente especialistas dessas áreas que alertam: não é suficiente divulgar amplamente informações seguras; para que elas sejam assimiladas por quem nega fatos comprovados, é preciso compreender como o fenômeno do negacionismo funciona.
“A questão é que, mesmo que elas sejam apresentadas a argumentos racionais e números reais, essas pessoas não são convencidas porque se identificam com o discurso atrelado ao negacionismo” (Wedencley Alves)
“Pode-se atribuir parte da culpa às estratégias oficiais que, propositalmente, disseminaram informações que são falsas ou diminuem a gravidade da pandemia – mas, para que essa discussão não fique estéril, precisamos reconhecer que há um processo de identificação entre várias pessoas e o discurso negacionista. A questão é que, mesmo que elas sejam apresentadas a argumentos racionais e números reais, essas pessoas não são convencidas porque se identificam com o discurso atrelado ao negacionismo”, explica o professor Wedencley Alves, coordenador do grupo de pesquisa Sensus: Comunicação e Discursos.
O pesquisador Odilon Caldeira Neto, coordenador do Laboratório de História Política e Social (LAHPS), faz coro ao colega. “É necessário compreender a lógica da estrutura interna do negacionismo, até porque ele, por definição, não propõe apenas a negação da ciência – ele também opera uma ordem alternativa de relação com a própria realidade.” O professor cita dois exemplos pontuais de uso do negacionismo como plataforma de articulação política, ambos anteriores à pandemia: o discurso de grupos da extrema direita em relação à Ditatura Militar brasileira e ao Holocausto.
“[O negacionismo], por definição, não propõe apenas a negação da ciência – ele também opera uma ordem alternativa de relação com a própria realidade” (Odilon Caldeira Neto)
“Muitos argumentos negacionistas do Holocausto, por exemplo, colocam em pauta uma suposição de que os crimes cometidos pelos nazistas teriam sido uma forma de barrar uma tentativa hipotética de ataque vinda de judeus. Em vários sentidos, o próprio negacionismo da ditadura opera de maneira semelhante, voltada para justificar ou até mesmo reabilitar as instâncias comprovadamente responsáveis por esses episódios. Ou seja, trata-se de uma ‘contrarrealidade’, e essa estruturação de modelos alternativos do real podem ultrapassar a dinâmica do próprio grupo.”
Encontrando a saída
Além do Brasil ser palco para a crença em um tratamento precoce sem eficácia comprovada, também é registrada uma intensa divulgação de conteúdos falsos ou distorcidos que promovem a desconfiança sobre medidas sérias de contenção da pandemia, como a eficácia de vacinas e o uso de máscaras. O pesquisador Wedencley Alves reforça que o fluxo constante de informações falsas não é bem sucedido somente devido à produção de fake news, mas também porque encontra terreno fértil entre a população.
“As pessoas aderem ao discurso porque ele está em sintonia com outras coisas que acreditam; elas se realizam e se reconhecem no ambiente que está reforçando e disseminando o negacionismo. Precisamos de mais pesquisas para investigar os modos de identificação dessas pessoas: quais são os argumentos que ressoam para elas, de que maneira elas se percebem, qual é a imagem que fazem de si mesmas, da ciência, da saúde, da política. Somente quando compreendermos essas pessoas em sua própria lógica, poderemos imaginar alguma saída do negacionismo”, afirma Alves.
Caldeira Neto reforça a necessidade de interpretar os significados e a lógica interna dos processos de difusão e de adesão à crenças negacionistas. “A crítica restrita somente ao negacionismo não consegue alcançar os princípios da estruturação do próprio fenômeno em si. É preciso pensar em métodos de neutralização dessas estruturas tão voláteis, tão diversificadas e, em certo sentido, tão duradouras.”