Virtuose do violino e um dos mais célebres e influentes compositores do barroco, o italiano Arcangelo Corelli (1653-1713) é destaque no programa do concerto de flauta doce e teorba com o duo formado pela brasileira Isabel Favilla e o italiano Giulio Quirici. Estabelecidos na Bélgica, os músicos fazem apresentação, neste domingo, 29, por “streaming”, no 31º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga – Edição Virtual. 

Brasileira Isabel Favilla e italiano Giulio Quirici visitam repertório de um dos mais influentes compositores do barroco (Foto: Divulgação)

O Festival é organizado pela Pró-reitoria de Cultura (Procult) e pelo Centro Cultural Pró-Música, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e se estende até esta segunda-feira, 30, sempre via plataformas virtuais. As transmissões, pelo canal do Pró-Música no Youtube, acontecem diariamente a partir das 19h, com palestra do professor de Música da UFJF, Rodolfo Valverde, destinada a fazer uma contextualização histórica dos programas dos concertos. Em seguida, às 20h, as apresentações artísticas. 

O concerto foi gravado para o festival juiz-forano na Sala de Música de Câmara do Concertgebouw Brugges, uma das salas de concerto mais importantes da Bélgica, ressalta Isabel. “Graças a uma chamada a projetos, pudemos usufruir da sala para gravar, mas preferimos fazê-lo sem ajuda externa para limitar os contatos durante a pandemia. Os teatros estão fechados, então muitas salas estão colaborando com músicos, oferecendo o espaço para ensaios e gravações, numa ajuda mútua. Foi uma honra para nós poder usufruir dessa sala com excelente acústica.”

Pouco se sabe sobre a vida de Arcangelo Corelli, exceto que sua carreira foi principalmente em Roma, onde recebeu patrocínio de mecenas da aristocracia e da nobreza italiana. Era admirado pelo refinamento harmônico de sua obra, que se tornou referência não só para os seguidores já mencionados, como para compositores da grandeza de Bach e Haendel. Segundo Isabel, o compositor italiano representa o chamado barroco clássico, o que hoje pode não surpreender, “Porém se pensarmos com os ouvidos da época, Corelli foi um divisor de águas em muitos aspectos. Cristalizou formas e a linguagem harmônica do barroco, além de simbolizar uma espécie de nova escola violinística (que deve muito a certas práticas anteriores do século XVII). Então ele se tornou modelo para muitos que vieram depois, violinistas ou não.”

Isabel se interessou por Corelli por via indireta, mais especificamente a partir de outro compositor ao qual se dedicou nos últimos anos: Charles Dieupart, de quem gravou em 2018 suas sonatas para flauta. “Nessas sonatas, há trechos que são realmente copiados de Corelli. Essas citações musicais são muito comuns no barroco, não existia tanto o conceito de plágio”, explica a instrumentista. Dieupart, como muitos outros compositores da época, se apaixonou pela música de Corelli, em Londres, onde havia muitos violinistas que haviam estudado com o italiano. “A partir dessas sonatas comecei a me interessar mais por Corelli, pois tinha que ir na fonte e entender essa música. Há muitas transcrições das sonatas dele para flauta, também em Londres, pois o instrumento era muito popular na Inglaterra”, conta. 

Programa
O programa Corelli e seus Seguidores traz obras deste compositor e, como informa o título, de alguns autores por ele influenciados: os franceses J.M Hotteterre e A. D. Philidor. Hotteterre foi um flautista francês, vindo de uma longa linhagem de músicos, que passou algum tempo em Roma no início do século XVIII e usava o apelido “le romain”. Nas suas suítes para flauta, Hotteterre flerta um pouco com o estilo italiano. Em seu segundo livro de suítes, ele as chama de suítes sonatas. “Ou seja, como Couperin e outros, está ali tentando essa simbiose com o estilo italiano. Suas triosonatas são muito espelhadas nas triosonatas de Corelli para dois violinos”, ressalta Isabel Favilla.

D. Philidor, assim como Hotteterre, descende de uma grande família de músicos com destacados postos na corte francesa. A “Sonate pour la flûte à bec (op.1)” é muito especial por se tratar de uma das poucas obras na França que indicam a flauta doce como opção principal de instrumentação. “O prelúdio é muito inspirado nos prelúdios das sonatas da chiesa de Corelli, mas com uma harmonia tipicamente francesa. Os movimentos rápidos e danças também são híbridos França-Itália”, observa Isabel.

O compositor escreve duas fugas com imitação (também muito usadas por Corelli nas suas sonatas da chiesa para violino). Na “Courante”, ele copia os primeiros compassos de uma “courante” de Corelli também. “O movimento “Les Notes Egales et Detachez” se parece a uma “gavotta” francesa, mas possui um baixo de “passacaille”, o que a torna melancólica e misteriosa. É uma obra muito interessante por fazer esse jogo duplo o tempo todo entre o estilo italiano e o francês.”

A sonata de Corelli que fecha o programa é uma das suas sonatas de câmara, que possui movimentos de dança. “É a segunda parte do seu “Opus 5” para violino solo que foi adaptada para flauta já no século XVIII, pelo famoso editor J. Walsh, que buscava com essas transcrições tornar acessíveis obras para outros instrumentos aos numerosos flautistas doces da época.”

Continuidade
Para Isabel, a realização de uma edição on-line do Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga é muito importante por permitir a continuidade do evento. “Apesar de acreditar que uma gravação sem público não substitua a energia de um concerto, um festival como o de Juiz de Fora, tão tradicional e significativo, não pode passar em branco”, ressalta, lembrando que a principal vantagem da versão on-line é o alcance dos concertos e o acesso a um público que não poderia vir à cidade normalmente. “Quem sabe o Festival fique ainda mais conhecido Brasil e mundo afora e com isso atraia ainda mais público nas próximas edições.”

Os músicos
Isabel e Quirici começaram a tocar juntos em 2012 e realizaram inúmeros recitais em duo desde então. Neste ambiente intimista, os seus instrumentos podem ser apreciados no seu estado mais belo, com toda a expressividade e a delicadeza tão próprias da música barroca. Eles viajaram internacionalmente e juntaram forças em vários CDs aclamados pela crítica (os dois últimos álbuns receberam “5 Diapasons” em 2019). A dupla ganhou o primeiro prêmio e os prêmios públicos no Händel Competition (Göttingen) e no Van Wassenaar Competition (Utrecht), com a Rádio Antiqua.

Isabel Favilla formou-se em flauta doce no Conservatório Real de Bruxelas (Bélgica) e em fagote barroco no Conservatório Real de Haia (Holanda). Trabalha regularmente em países europeus e sul-americanos como solista e músicista de orquestras, tais como Concerto d’Amsterdam, La Sfera Armoniosa, Le Concert Bourgeois, Ars Mirabilis e Les Muffatti. Já tocou sob direção de Fabio Bonizzoni, Alan Curtis, Mike Fentross, Peter van Heyghen, Marcel Ponseele, Ryo Terakado, Luis Otávio Santos e Paul Dombrecht e gravou CDs com Il Complesso Barocco, Collegium Musicum Den Haag, Orquestra Barroca de Juiz de Fora e Les Muffatti. É fundadora do ensemble La Favilla e cofundadora do ensemble Rádio Antiqua. Com o segundo, venceu o prêmio do júri e do público no concurso de música de câmara de Goettingen (Festival Haendel, 2014). Desde 2013, Radio Antiqua tem sido apoiado pelo projeto de cooperação cultural europeu Eeemerging, que visa a promover ensembles de música antiga promissores. Como resultado, Rádio Antiqua gravou seu primeiro CD em 2015, recebendo elogiosas críticas da imprensa especializada.

Natural de Vicenza, Itália, Giulio Quirici (Teorba) já tocou sob a direção de Frans Bruggen & Orquestra do Século 18, Lionel Meunier & Vox Luminis, Enrico Onofri, Milos Valent, Andrea Friggi e Ensemble Odyssee, Philippe Pierlot, dentre outros. Toca regularmente com diversos grupos de música de câmara em toda a Europa, em especial com o ensemble Rádio Antiqua, em importantes salas de concerto e festivais, como Concertgebouw, Handel Haus Halle, Innsbrucker Festwochen der Alten Musik, Goetteingen Haendel Festspiele e Festival d’Ambronay. Quirici formou-se no Conservatório Real de Haia (Holanda) e também frequentou cursos do Berklee College of Music, Akademie für Alte Musik Bremen e a New School for Contemporary Music. Atualmente forma parte do corpo docente da British School in The Netherlands.