De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a rápida difusão de fake news sobre a Covid-19 assemelha-se a uma curva epidêmica: “uma abundância excessiva de informações dificultando a localização de fontes, informações e orientações confiáveis”. A doença causada pelo novo coronavírus já matou mais de 390 mil pessoas no mundo todo e totaliza aproximadamente 6,8 milhões de casos confirmados pelo globo. O Brasil é o segundo país com mais casos, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. A OMS afirma que o Brasil é um novo epicentro da pandemia, com cerca de 700 mil casos e 36 mil mortes. Com a preocupação, cresce a produção e a difusão de notícias falsas que prometem um cenário melhor ou tentam apontar culpados para a situação.
O anseio por uma cura milagrosa
Das informações mais difundidas durante a pandemia, grande parte girava em torno do uso de medicamentos para o tratamento da doença. De acordo com reportagem publicada recentemente pela revista Nature, um documento exaltando prematuramente os benefícios da cloroquina como antiviral contra a Covid-19 foi espalhado em massa no Twitter. A Fox News – canal de notícias conservador americano – transmitiu um segmento com um dos autores do documento original. No dia seguinte, o presidente da nação com mais casos confirmados, Donald Trump, chamou as drogas de “muito poderosas” em uma coletiva de imprensa, apesar da falta de evidências. Em seguida, houve pequenos picos nas pesquisas do Google por hidroxicloroquina e cloroquina. Com isso, o medicamento esgotou-se em diversas farmácias, prejudicando pessoas que precisam do mesmo para tratar doenças como o lúpus, cujos efeitos de tratamento são comprovados.
Apesar de a cloroquina já ser um medicamento com propriedades antivirais reconhecidas, o caminho para a aprovação de uma substância para o tratamento de uma doença é longo. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) disponibiliza o roteiro com todas as disposições e fases necessárias para a aprovação de um medicamento. De acordo com o infectologista Rodrigo Daniel de Souza, não existem grandes estudos randomizados e controlados (modelo ideal) que falem a favor ou contra a cloroquina. “Para que isso ocorra, temos fases de estudo que devem ser seguidas. Infelizmente, não tivemos tempo hábil. A maior parte destes medicamentos não demonstraram, em estudos observacionais, quaisquer benefícios na melhora dos pacientes vítimas da Covid-19, desestimulando seu uso pela classe médica.”
Em um cenário de urgência demandada pelo contexto pandêmico, a OMS demonstra preocupação com a automedicação e afirma que ainda não existem evidências empíricas para o uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. A ingestão de um medicamento cuja eficácia ainda não foi comprovada pode trazer risco para a saúde daqueles que o administram.
O crescimento da curva de fake news no Brasil
Um estudo conduzido pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) identificou as principais fake news relacionadas à Covid-19 no país. No início da pandemia no Brasil – entre 17 de março e 10 de abril – a maior parte das notícias falsas (65%) ensinavam métodos caseiros para prevenir o contágio. Conforme a curva pandêmica crescia, as notícias falsas começaram a focar nas medidas de prevenção da doença, como o distanciamento social e o uso de álcool em gel, indo de encontro com as orientações da OMS. O estudo também aponta que 15,9% das fake news – entre 17 de março e 13 de maio – tinham como conteúdo a negação da existência da doença.
Segundo Paulo Roberto Figueira Leal, cientista político e pesquisador da Faculdade de Comunicação da UFJF, um dos elementos centrais para a transformação de certos fatos em notícias é a capacidade que eles têm de chamar a atenção do público. “Quanto mais grandioso, surpreendente e espetacular é um fato, maior a tendência de que ele desperte atenção ao ser noticiado”, explica. Sabendo-se disso, produtores de notícias falsas costumam apresentá-las em termos espetaculares. “Por não terem qualquer correspondência com a realidade, as fake news não são limitadas por ela – isso resulta no fato de que esses conteúdos tendem a ter, em redes sociais, maior circulação do que notícias reais, como já atestaram numerosas pesquisas internacionais.”
Uma das grandes preocupações de pesquisadores da área é a origem dessas fake news. Um estudo da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, relaciona a criação de parte das notícias falsas a grupos extremistas, que ocupam plataformas on-line não regulamentadas e acabam chegando a grupos privados do Facebook, emergindo também no Twitter. O estudo diz que um “multiverso de ódio” está explorando a pandemia de Covid-19 para espalhar o racismo e outras agendas maliciosas, atribuindo a culpa da existência do vírus a judeus e imigrantes, por exemplo. “O fascismo e o protofascismo, ao longo da história, sempre foram inimigos da ciência, da educação, da cultura e da arte, porque todas essas áreas têm potencial libertário e autonomizador”, esclarece Leal.
Segundo o pesquisador, para não ser enganado por notícias falsas, é preciso cultivar o hábito da dúvida, questionando e checando-as com outras fontes. “A discussão sobre crença em fake news é apenas a ponta do iceberg a revelar que há muitas deficiências na formação do cidadão médio ao longo de sua trajetória escolar e universitária, que nem sempre estimula este tipo de vivência crítica. Se, a curto prazo, precisamos combater a epidemia de fake news, a longo prazo precisamos travar essa luta em termos de formação.”
Fake news na era da pós-verdade
A verdade é um conceito enraizado na cultura ocidental; Platão introduziu a ideia de verdade como um valor absoluto, inquestionável, superior a todos os outros. Esse pensamento continuou sendo difundido por religiões como o cristianismo e movimentos como o iluminismo e o positivismo. Porém, com o avanço da tecnologia e da forma como a comunicação é feita, o dualismo entre os conceitos de verdade e mentira é enfraquecido. “Não se pode mais distinguir as informações e as notícias em dois blocos apenas. Isso tem a ver, naturalmente, com as formas como a comunicação se estrutura hoje em contraste com formas anteriores de organização do nosso sistema de comunicação. Atualmente, e isso é muito positivo, a produção e a circulação de informação e não está mais nas mãos de poucos protagonistas”, revela Teresa Neves, pesquisadora da Faculdade de Comunicação da UFJF.
Por isso, da mesma forma que a internet possibilita a difusão de notícias que carecem de qualificação, também permite que essas informações sejam facilmente verificadas. “São instrumentos poderosíssimos para identificarmos notícias desqualificadas, frágeis. E não só podemos denunciá-las como notícias sem uma fundamentação mais consistente, como também nos dotamos de capacidade para qualificar as informações e torná-las mais consistentes, mais verificáveis”, conta Teresa. “Todos nós já assumimos a responsabilidade não só pelas informações que consumimos, mas também por aquelas que propagamos. Essa responsabilidade não está mais entregue a um só, a uma emissora de TV, a um jornal, a uma atividade jornalística.”
A divulgação de informações, como as pesquisas que buscam o tratamento para a Covid-19, segue, de certa forma, a metodologia científica: estão sempre sujeitas a questionamento em frente de novas informações mais específicas e que refletem melhor a realidade atual. “Informações melhores são aquelas que podem ser melhor qualificadas do ponto de vista informativo. Isso não quer dizer que elas sejam verdadeiras, quer dizer que é o melhor que nós podemos produzir dadas as circunstâncias, dadas as informações e as fontes de que dispomos naquele momento”, expressa a pesquisadora. De acordo com ela, informações serão sempre provisórias e sempre devem ser submetidas a uma reavaliação. “É assim que a ciência se move, sempre estando disposta e disponível a indagação, a novas perguntas, a novos questionamentos e a novas compreensões daquilo que ainda não compreendemos.”