Falar sobre fascismo remete, em grande parte, a conflitos de décadas atrás, com associações imediatas ao regime nazista e a figuras como o ditador Benito Mussolini. O conceito, no entanto, também encontrou terreno fértil em terras brasileiras e, embora germinado no século passado, ainda é motivo de alerta atualmente – até mesmo durante a pandemia do novo coronavírus. Os pesquisadores vinculados ao Laboratório de História Política e Social (LAHPS) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, contextualizam o histórico do fascismo nacional e chamam a atenção para o crescimento e a impunidade de ações antidemocráticas e radicais no país. De acordo com os pesquisadores, o Brasil está em estágio de normalização cultural do discurso neofascista.
“Como todo conceito, o fascismo também sofre mutações. Se observarmos uma caracterização fascista dentro de uma ótica histórica dos anos 30, por exemplo, veremos um modelo diferente do que o atual. Enquanto antes ele era mais concentrado em tradições partidárias – como na Ação Integralista Brasileira –, hoje é possível observar o neofascismo também em atos específicos e ações individuais”, explica Gonçalves. O pesquisador e biógrafo de Plínio Salgado – principal líder fascista da história do Brasil – estuda movimentos autoritários há mais de vinte anos. Gonçalves também coordena a rede de pesquisa internacional “Direitas, História e Memória”, dedicada a análises sobre as direitas em perspectivas transnacionais, abordando tanto o aspecto político e cultural, quanto o caráter histórico das mesmas.
O uso recente da simbologia e de reivindicações de grupos neofascistas internacionais em manifestações brasileiras é destacado pelo professor Caldeira Neto, pesquisador do neofascismo e coordenador do Observatório da Extrema Direita, iniciativa voltada à análise e ao monitoramento de movimentos, lideranças e organizações da extrema direita global. “Precisamos entender como esses elementos chegaram até aqui, pois o uso da internet não é a única explicação. É preciso pensar historicamente porque, desde a experiência integralista no Brasil, há pouco menos de cem anos, é observada a formação de uma rede de comunicação de indivíduos e ideias de extrema direita no país.”
Chocando o ovo da serpente
Em 1932, o político Plínio Salgado publicou o Manifesto de Outubro e o documento tornou-se o marco de fundação da Ação Integralista Brasileira (AIB). Conhecido historicamente como a maior expressão fascista da história do Brasil, o integralismo caracteriza-se como um movimento autoritário, nacionalista, conservador e fortemente ancorado em preceitos religiosos.
No dia 10 de dezembro de 2018, o grupo “Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira” invadiu o campus da Unirio e queimou três bandeiras com símbolos antifascistas
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a desvalorização da ideologia fascista, o movimento integralista perde força – mas não a coesão. A morte de Plínio Salgado em 1975 fragmentou os integralistas, que dividiram-se em grupos menos expressivos. Os pesquisadores da UFJF, no entanto, ressaltam como o movimento voltou a atuar em anos recentes, fazendo uso, inclusive, de atos violentos. No dia 10 de dezembro de 2018, o grupo auto denominado como “Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira” invadiu o campus da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e queimou três bandeiras com símbolos antifascistas. Na madrugada do dia 24 de dezembro de 2019, membros do mesmo grupo lançaram dois coquetéis molotov na sede produtora do grupo de humor Porta dos Fundos.
“Os atos de violência são feitos, mas não existem medidas contrárias tomadas – nenhum dos envolvidos foi localizado e não há esforço para puni-los. O Eduardo Fauzi, único membro identificado, fugiu para Rússia e, até o momento, o Ministério de Relações Exteriores não indicou nenhum ato de extradição”, aponta Gonçalves. Em 24 de abril deste ano, o muro do Consulado da China, localizado no Rio de Janeiro, amanheceu vandalizado com os dizeres “Fauzi herói” – o foragido, que confessou o ataque à produtora, também chegou a conceder entrevistas já fora do Brasil e afirmou que foi avisado do mandado de prisão emitido contra ele.
Já no dia 24 de dezembro de 2019, membros do mesmo grupo integralista lançaram dois coquetéis molotov na sede produtora do grupo de humor Porta dos Fundos
“Com essa omissão de justiça, esses grupos sentem-se seguros para agir no país e o Brasil consolida-se como um terreno fértil para ações antidemocráticas e intolerantes”, diz Gonçalves. Além dos atentados integralistas, os pesquisadores expressam suas análises de manifestações mais recentes, como a Marcha dos 300 – que, apesar do nome, reuniu poucas dezenas de pessoas – e o consumo de copos de leite puro em transmissões ao vivo feitas pelo presidente Jair Bolsonaro e membros e apoiadores do seu governo.
“A Marcha carregou toda uma simbologia e uma ritualística que remete à experiência do neofascismo internacional, como os protestos da extrema-direita em Charlottesville, bem como ações de movimentos identitários da direita radical europeia. São grupos que querem retomar um processo de homogeneidade cultural e a criação de uma identidade fundamentalmente autoritária”, explica Caldeira Neto. Gonçalves complementa: “é um ato de experimentação neofascista. Há a ameaça do terror, inclusive posteriormente, com a líder do movimento utilizando redes sociais para intimidar um ministro do Supremo Tribunal Federal.”
Embora mais sutil, o uso proposital do copo de leite também é tradicional na semântica neofascista internacional. “Ele é difundido mundialmente como um símbolo de pureza racial. É preocupante porque acaba, em última instância, possibilitando mais do que um discurso, mas também práticas que terminam por naturalizar as credenciais históricas e culturais do fascismo”, elucida Caldeira Neto. Gonçalves complementa afirmando que não é recomendável menosprezar atitudes que, à primeira vista, soam ingênuas. “Existe uma proposta político-ideológica ligada a essa simbologia.”
Extrema-direita é sinônimo de fascismo?
A extrema-direita, por definição, é um espectro político radical que propõe rupturas com a ordem democrática. Por ser um campo amplo, abarca uma grande miríade de expressões que, embora não sejam sinônimas, podem carregar reivindicações em comum, como o ultranacionalismo e o conservadorismo. Exemplos de movimentos de extrema-direita, além do próprio fascismo, são os que defendem a restauração da monarquia e a instauração de uma ditadura militar.
“Já o fascismo, por definição, não busca apenas construir uma ordem autoritária e um regime de exceção. Ele busca recriar a nacionalidade, enxergar os mitos de uma origem regressa, muitas vezes intocada na memória imaginada dos membros do movimento. Nesses mitos, existirá um processo de purificação da nacionalidade”, esclarece Caldeira Neto. “Então, quando os grupos neofascistas afirmam querer criar uma nação brasileira, não estão pensando apenas no que é o Brasil, mas sim no que, para eles, não deve ser o Brasil. Não é apenas um movimento revivalista; trata-se da criação de uma narrativa de regeneração nacional que busca encontrar categorias sociais que sejam enquadradas como inimigos. É uma política de ‘nós contra eles’, os desejáveis versus os indesejáveis.”
O pesquisador Gonçalves conclui com a afirmação de que o fascismo histórico brasileiro vem de experiências e circulações internacionais. “Foi assim nos anos 30 e é assim hoje. Para enxergar o neofascismo, é preciso observar ações de indivíduos e não apenas de partidos políticos – os discursos de ódio, a intolerância, a defesa de um nacionalismo radical e o uso da força e da violência são características convergentes com práticas fascistas autoritárias, que dialogam com grupos que existem pelo mundo afora.”