Com o objetivo de atuar pela afirmação dos direitos humanos no âmbito do sistema prisional de Governador Valadares, por meio da educação, articulação e mobilização popular, e de atividades de advocacy e de litigância estratégica junto ao Estado, professores do campus GV da Universidade Federal de Juiz de Fora criaram o Nise (Núcleo Interdisciplinar Sociedade e Encarceramento).
Vinculado ao programa de extensão Centro de Referência em Direitos Humanos, o Nise será um parceiro da Plataforma Desencarcera, que recebe denúncias anônimas de violações de direitos relacionadas ao sistema prisional de todo o Estado de Minas Gerais por meio do seu site. Visando fomentar o número de denúncias no interior de Minas Gerais, uma vez que a Plataforma atinge majoritariamente o público de Belo Horizonte e de sua região metropolitana, o Nise atuará na divulgação dessa possibilidade no interior e abrirá um novo canal de denúncias, anônimas ou identificadas, por meio de seu WhatsApp, que será divulgado, inicialmente, junto a uma lista de cerca de quinhentos familiares de presos e presas atendidas pela Defensoria Pública nos últimos seis meses.
“A ideia é que essas denúncias possam alimentar o banco de dados da Plataforma Desencarcera e, assim, permitir uma atuação coletiva no âmbito regional, de todo o Estado de Minas Gerais, mas que também possam contribuir para a mobilização e a articulação local, no território de Governador Valadares e região metropolitana. Por isso a importância da coexistência e da utilização simultânea dos dois canais: Plataforma Desencarcera e WhatsApp do Nise. Indicamos, inclusive, que as pessoas façam a mesma denúncia pelos dois canais”, afirmou Nayara Medrado, professora do departamento de direito da UFJF-GV e coordenadora do Nise.
Medrado ressalta que a coleta das denúncias possui um triplo objetivo: criar um canal de comunicação que contribua para a formação de uma rede, composta por Universidade, familiares e amigos de presos, entidades e pessoas sensíveis à pauta, que sejam atuantes na afirmação dos direitos humanos no sistema prisional de Governador Valadares; informar e influenciar a opinião pública; e produzir um material, na forma de relatórios técnicos, voltado a pressionar os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, na tomada de decisões relacionadas à afirmação dos direitos humanos no contexto carcerário.
“O nosso foco está em mobilização e articulação coletiva junto aos familiares e aos amigos de presos e a entidades parceiras, como a Defensoria Pública e a Pastoral Carcerária. Existem no Brasil diversas associações de amigos e de familiares que têm um papel importante no sentido de fiscalização e de denúncia de violações no interior e no entorno do sistema prisional, além de mobilização coletiva para a luta pelos direitos humanos nesse contexto. Como exemplos, temos o Grupo de Amigos e Familiares de pessoas privadas de liberdade, em Belo Horizonte, e a AMPARAR, em São Paulo. Governador Valadares não conta com qualquer associação desse tipo.”
Mais informações podem ser obtidas através do whatsapp (31) 98268-9823, Instagram e Facebook do Nise.
Covid-19 no sistema carcerário
Em parceria com Laboratório de Estudos sobre Trabalho, Cárcere e Direitos Humanos, da Universidade Federal de Minas Gerais (LABTRAB/UFMG), o Nise tem trabalhado na elaboração de um relatório sobre a situação do sistema prisional mineiro em meio à pandemia da covid-19, a partir de denúncias recentemente recebidas pela Plataforma Desencarcera. O objetivo é que esse relatório – preparado em dois formatos distintos, um mais extenso/detalhado e outro mais esquemático/ilustrativo – sirva tanto para informar e influenciar a opinião pública, quanto também para pressionar os poderes do Estado.
Desde o início da pandemia, a Organização Mundial de Saúde recomenda o isolamento social e a higienização adequada como formas de prevenção contra o novo coronavírus. Porém, como seguir estas recomendações em um sistema prisional superlotado e com infraestrutura precária?
Dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) apontam que o Brasil chegou a 1.343 casos de covid-19 no sistema carcerário até o dia 31 de maio, dentre os quais houve 44 óbitos. Os números são preocupantes e tendem a aumentar, sobretudo se consideradas a taxa de testagem que tem ficado abaixo de 0,6% do total e as péssimas condições de higiene em que vive grande parte da população carcerária. “Minas Gerais, aliás, é um dos Estados com maior subnotificação, e 90% das unidades não têm lugar adequado para isolamento, e nem celas ou alas destinadas exclusivamente a pessoas idosas”, salientou Medrado.
O Brasil possui a marca média de 170% de superlotação, com um déficit de 287 mil vagas no sistema carcerário. De acordo com Medrado, os presos, em sua maioria, vivem em péssimas condições estruturais e sanitárias, com ventilação e temperaturas inadequadas, saneamento básico precário ou inexistente, alimentação de péssima qualidade, racionamento de água e de energia.
“Como falar em distanciamento de dois metros para uma pessoa que divide uma cela de 4m² com dezenas de outras pessoas? Como falar em um protocolo de medidas preventivas com uso de álcool em gel com pessoas que não têm acesso sequer a sabonete em barra? Como falar em necessidade de lavar as mãos com mais cuidado e com maior frequência para pessoas que têm o tempo de banho extremamente reduzido e milimetricamente controlado, quando não estão expostos à água contaminada?”, questiona Medrado.
Além do crescimento do número de casos de covid, Medrado chama a atenção para a incidência de doenças como sífilis, sarna, tuberculose e HIV/Aids no sistema prisional, como resultado da ausência de infraestrutura e de profissionais de saúde. Estima-se que 40% das unidades prisionais não têm consultório médico; 48% não têm farmácia nem consultório odontológico; 26% não tem módulo de saúde e que há um médico atuando nas prisões para cada grupo de mil presos.
Para a professora de Criminologia e Direito Penal, o enfrentamento à covid no cárcere é um desafio para toda a sociedade uma vez que o sistema prisional não deve ser considerado “uma ilha isolada”. “São 2.434 servidores entrando e saindo diariamente das unidades em todo o Brasil, além de um incalculável número de materiais possivelmente contaminados. Pensando nisso, a lógica eugenista segundo a qual a covid nas prisões é bem-vinda, além de sádica, é desprovida de sentido. A tendência não é de os surtos entrarem nas prisões e por lá ficarem. Mais frequente que isso são os surtos de doenças infectocontagiosas que têm início ou difusão exatamente dentro do sistema prisional e acabam atingindo a população em geral, como já ocorreu, em outras oportunidades, com a tuberculose, por exemplo”.
Preocupado com o aumento de casos de covid-19 no sistema prisional, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) emitiu recomendação a tribunais e magistrados para que sejam adotadas medidas preventivas à propagação do novo coronavírus. Porém, para Medrado, a maior parte da Recomendação nº 62 do CNJ consiste na repetição de disposições que já estão em lei, mas que majoritariamente não são cumpridas. “Como inovação, ela traz, basicamente, a recomendação de concessão de prisão domiciliar para presos do regime semiaberto e aberto, ‘mediante condições a serem estabelecidas pelo Juízo da Execução’; para pessoas presas por dívida alimentícia; para pessoas com suspeita ou confirmação de contaminação por covid-19 que estejam em unidades desprovidas de condições de isolamento; e, no geral, recomenda uma reavaliação da prisão e da internação preventivas para adolescentes, indígenas e outras pessoas que façam parte do ‘grupo de risco’. Para além disso, recomenda-se a suspensão da exigência de comparecimento periódico em juízo em casos previstos em lei e a suspensão ou remodelação das audiências de custódia, além da elaboração e da implementação de um plano de contingências pelo Poder Executivo”.
Ela destaca que a covid e demais doenças nas prisões não serão resolvidas se não houver uma mudança estrutural no sistema penal que passe pela revisão da política de hiperencarceramento. “Imediatamente, a saída não pode ser outra que não a contenção do encarceramento em massa e, dentro de uma política de redução de danos, já seria um avanço enorme fazer valer minimamente as tantas normativas, nacionais e internacionais, atualmente transformadas em letra morta, que garantem uma série de direitos às pessoas direta e indiretamente atingidas pela privação de liberdade, muitos direitos inclusive atinentes à saúde e à dimensão sexual e reprodutiva, e que já preveem sua respectiva estratégia de implementação. Imediatamente, portanto, passa por entender o óbvio: a privação deveria ser de liberdade, e não de todos os direitos humanos de que essas pessoas, enquanto humanas, são titulares”, concluiu Medrado.