Em meio à progressão do número de contaminados pelo novo coronavírus, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tem demonstrado preocupação com outro problema crescente que também compromete a saúde pública: a desinformação.
Disseminadas principalmente em redes sociais, as chamadas fake news têm ludibriado cada vez mais pessoas que recebem textos, áudios e vídeos em seus celulares, com versões desencontradas e mentirosas sobre a melhor forma de combater a COVID-19, sobre sua origem, dentre outras.
Para Ana Carolina Monari, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Informação e Comunicação em Saúde, do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (ICICT), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), é possível traçar algumas temáticas já disseminadas através de fake news. “Em um primeiro momento, as fake news sobre o assunto abordavam os aspectos sanitários da doença e buscavam oferecer falsas recomendações de prevenção, promessa de cura, receitas caseiras, utilização de alimentos alcalinos e a ingestão de vitamina C. Posteriormente, no entanto, o enfoque passou a ser a disputa política sobre isolamento social versus economia. Duas desinformações desse período me chamaram atenção: 1) a OMS teria recuado das recomendações de isolamento social; 2) sobre o uso de dados inverídicos de outros países, como a Itália, Estados Unidos, Suécia e Países Baixos, para reforçar o argumento de que é preciso relaxar a quarentena”.
Ana Carolina citou ainda o uso de material para propagar acusações xenófobas contra o povo chinês culpando-os por disseminarem o vírus e relatos falsos de cura de pacientes e de supostas liberações para o uso da cloroquina com o objetivo de propagar os benefícios da droga contra o novo coronavírus.
Para Allan Santos, doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) e pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Comunicação, História e Saúde (NECHS – Fiocruz/UFRJ), é preocupante quando a maior crise sanitária mundial do último século é politizada por meio de técnicas de guerras culturais. “Ocorrem disputas de narrativas para a produção de sentidos comuns aos vários grupos sociais polarizados que tendem a banalizar a gravidade da pandemia de COVID-19 e enfraquecer aquilo que deveria ser o objetivo principal da nossa atenção neste momento: salvar vidas”.
Visando combater a desinformação sobre a COVID-19, o Ministério da Saúde criou um site para desmentir as principais notícias falsas em circulação. A OMS, por sua vez, lançou uma versão em português de número de Whatsapp sobre COVID-19, com o objetivo de tirar dúvidas e ajudar a população a descobrir se determinada informação é verdadeira ou não. Porém, todos os esforços podem ser insuficientes uma vez que parcela significativa da sociedade tende a acreditar em fake news e teorias da conspiração. “É importante compreendermos qual é o regime de verdade que vivemos contemporaneamente e que tem legitimado tais enunciados como verdadeiros para um grupo expressivo da população. As ideias e afetos que sancionam esses enunciados como verdadeiros estão inseridos em uma cultura que conjuga o negacionismo científico e a racionalidade neoliberal. Por um lado, há na contemporaneidade uma hipervalorização dos testemunhos e das vivências, tomando a experiência e a crença pessoal como vias privilegiadas para a produção do conhecimento. Por outro, a forma de estarmos no mundo e nos relacionarmos uns com os outros é pautada pela racionalidade neoliberal, administrando os problemas específicos da população e as políticas públicas pela lei da economia máxima”, destacou Allan Santos.
A ausência de senso crítico e a proximidade com o emissor das fake news são ainda outros fatores que facilitam a aceitação de conteúdos equivocados, conforme destacou a pesquisadora Ana Carolina. “Os indivíduos tendem a acreditar em fake news porque ainda existe uma ausência crítica da população em determinar o que é verdade ou não e porque grande parte desse conteúdo é enviado por pessoas próximas e/ou de seu convívio – irmãos, pais, avós, tios, amigos e colegas de trabalho, entre outros. Os conteúdos falsos também podem ratificar pensamentos e crenças pré-estabelecidas e, por isso, muitas pessoas preferem acreditar nesse material – é o que se chama de viés de confirmação”.
Para Allan Santos, a produção de sujeitos críticos, bem como a articulação de políticas públicas com as empresas da tecnologia da informação e da comunicação e a reavaliação da posição e do papel social do jornalismo são alguns dos caminhos a serem seguidos para fomentar o combate a desinformação.
A reformulação do jornalismo também é defendida por Ana Carolina. “Existe uma crise no processo produtivo do jornalismo e uma quebra na figura de autoridade que os jornalistas tinham perante ao público, além de um afastamento da população das instituições científicas. O conjunto de todas essas situações faz com que a disseminação de notícias falsas ganhe corpo e seja distribuída em diversas camadas da população dificultando o seu combate, uma vez que a população tende a desconfiar das informações que chegam até o seu alcance. É como se a desinformação viesse para confundir o público, fazendo com que ele não saiba quais fontes são confiáveis ou não e levando-o a consumir fake news que podem trazer consequências graves para diversas áreas de suas vidas, como a saúde”.
Engana-se, porém, quem acha que as fake news sobre saúde surgiram apenas no século XXI. Durante a Gripe Espanhola, em 1918, por exemplo, circularam pela imprensa brasileira informações falsas com receitas milagrosas para o combate da doença. “O estudo ‘O carnaval, a peste e a ‘espanhola’‘, de Ricardo Augusto dos Santos, publicado em 2006, mostra que os jornais e as autoridades cariocas propagavam os benefícios das ‘receitas peculiares’ como uma forma de combater a doença. É importante ressaltar, portanto, que boatos sempre existiram na sociedade – há relatos de casos de desinformação desde a Grécia Antiga até a propaganda nazista de Hitler. O advento das redes sociais digitais, no entanto, aumentou a escala, a rapidez e a massiva proliferação e consumo desse tipo de conteúdo”, destacou Ana Carolina.