Diretrizes muitas vezes conflitantes têm sido adotadas por governos estaduais, municipais e federal desde o início da pandemia de Covid-19. O embate de forças entre os poderes, escancarada nos meios de comunicação, gera dúvidas na cabeça do cidadão, que precisa manter-se informado diante da grave crise sanitária e econômica experimentada pelo país.
Em matéria de saúde, a Constituição de 1988 estabeleceu a competência comum, legislativa e administrativa entre União, estados, municípios e Distrito Federal. Por isso, criou o Sistema Único de Saúde (SUS) cuja regulamentação e prestação de serviços é feita a partir da responsabilidade solidária entre as entidades federativas. No caso da pandemia de Covid-19, medidas essenciais ao enfrentamento, como prover equipamentos de proteção, leitos hospitalares e profissionais de saúde, são tarefas de todas as entidades federativas, que deverão cooperar entre si para desempenhá-las.
Já outras ações correlatas poderão ser definidas por diferentes disposições constitucionais, conforme explica a professora de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UFJF, Luciana Gaspar Melquíades Duarte. “Por exemplo, o isolamento social pode diferir entre os Estados e entre os Municípios, em conformidade com a variação da disseminação do vírus infectante em cada um. A regulação do funcionamento do comércio é tradicionalmente considerada assunto de interesse local, sendo, portanto, reservada para a atuação municipal. Já a regulação dos serviços públicos será efetuada pela entidade pública responsável pela sua oferta, não sendo possível a ingerência da União sobre serviços estaduais ou municipais, e vice-versa.”
Fechamento do comércio e estradas
A União terá autonomia para regular a circulação de pessoas e bens em âmbito nacional, ao passo que os estados a terão, em âmbito intermunicipal, e os municípios em âmbito interno aos respectivos territórios. “Em qualquer caso, porém, esta autonomia não é irrestrita; antes, deve preservar a eficácia mínima de direitos que podem ser afetados com eventuais medidas de restrição.”
Isso significa não ferir alguns direitos essenciais à vida. “Restrições ao acesso a uma determinada cidade não poderão impedir o trânsito de cargas de alimentos, pois isso pode implicar um colapso no abastecimento e ofender o direito à alimentação. Tampouco pode ser impedido o acesso injustificado dos habitantes da cidade, posto que estará violado o direito à moradia”, acrescenta Luciana, que é mestre e doutora em Direito Público pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pela mesma justificativa, a determinação de fechamento do comércio não pode abranger estabelecimentos responsáveis pela disponibilização de alimentos e remédios.
Limites de atuação dos três poderes
Ao Poder Legislativo (câmara de vereadores, assembleias legislativas e Congresso Nacional) cabe a elaboração das normas que vão orientar as políticas públicas, como as que dizem respeito à saúde. No entanto, as leis estabelecidas por essas instâncias deixam lacunas nas quais pode operar o poder regulamentador também do Executivo – formado pelos prefeitos, governadores e presidente da República – observando a Constituição.
Assim, cabe ao Poder Executivo a realização das ações previstas tanto nas leis quanto nos atos administrativos normativos. “Não será possível ao Poder Executivo, porém, determinar medidas restritivas, que limitem ou aniquilem direitos, com base neste poder normativo, uma vez que a Constituição determina, no inciso II de seu art. 5º, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei”, continua a professora.
Com esse entendimento, as determinações de fechamento de estabelecimentos e de uso de máscaras em vias públicas serão obrigatórias somente se estiverem em leis ou medidas provisórias. Quando editadas por decretos do executivo, poderão ter apenas caráter orientativo. “O decreto poderá, por exemplo, orientar que as pessoas apenas saiam às ruas vestindo máscaras, mas não poderá cominar sanções (multas ou detenção) contra o descumprimento dessa diretriz. A sanção, em virtude de seu caráter necessariamente restritivo, apenas será válida se constante de lei ou medida provisória”.
Por sua vez, ao Poder Judiciário cumprirá a verificação da obediência destes limites pelos demais poderes, podendo atuar a partir de alguma ação judicial aberta que questione a atuação dos demais poderes. Foi o que fez no dia 8 de abril, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Ao julgar a ação proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra a omissão do Poder Executivo federal, o STF assegurou aos governos estaduais, distrital e municipais competência para a adoção ou manutenção de medidas restritivas durante a pandemia de Covid-19 em seus territórios. Entre elas, a imposição de distanciamento social, suspensão de atividades de ensino, restrições de comércio, atividades culturais, circulação de pessoas, entre outras. “Para o cidadão, isto significa que as determinações dos respectivos governadores e prefeitos proferidas de forma válida, dentro dos limites tracejados, deverão ser observadas, conforme decidiu o STF”, aponta a professora.
A defesa da vida ganha um status constitucional total e completamente privilegiado (…) e assegurá-lo é dever do Estado, bem como direito de todos
Muitas vezes, os dispositivos constitucionais, enquanto normas-princípio, colidem com outros, como os que garantem o direito ao exercício da atividade econômica e profissional e a busca do pleno emprego. No entanto, de acordo com a especialista, como as políticas públicas de saúde em questão expõem a risco a vida humana, em favor dela milita o argumento de que apenas pelos seres humanos vivos poderão usufruir dos demais direitos constitucionalmente assegurados, incluindo os econômicos.
“Assim, a defesa da vida ganha um status constitucional total e completamente privilegiado, garantindo-lhe uma hierarquia superior à de todos os outros direitos, e assegurá-lo é dever do Estado, bem como direito de todos. O direito à preservação da vida humana é de tal peso e relevância que autoriza e justifica até mesmo o endividamento público, caso necessário, uma vez que, num processo de ponderação, sobressai-se diante dos princípios constitucionais financeiros que orientam pela higidez das contas públicas.”
Divergências palacianas
Assim como cabe ao presidente da República nomear e exonerar seus ministros de estado, é também lícita a objeção de consciência por parte dos ministros. Eles podem recusar a prática de qualquer ato determinado ou esperado pelo chefe do Executivo que esteja em desacordo com suas convicções técnicas ou pessoais. Foi exatamente o que aconteceu entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, demitido da pasta no dia 16 de abril.
“Considerando sua formação acadêmica na área da saúde, o ex-ministro ressaltava a discordância dos comandos exarados pelo Sr. Presidente às evidências científicas, mas há que se acrescentar, também, a desconformidade dessas diretrizes presidenciais aos preceitos constitucionais que orientam as políticas públicas de saúde, presentes nos artigos 196 e 197 da Constituição, que determinam expressamente que elas deverão reduzir o risco de doença, sem prejuízo da promoção, proteção e recuperação da saúde prejudicada”, analisa a professora Luciana Duarte.
O que deve pensar o cidadão quando o presidente tenta sabotar, por palavras e atos, as políticas sanitárias recomendadas pelo Ministério da Saúde de seu próprio governo?
Para o cientista político e professor da Faculdade de Comunicação da UFJF, Paulo Roberto Figueira Leal, em momentos de crise, o que se espera do poder público é a capacidade de articulação das respostas e de coordenação das políticas públicas – que dependem de ações integradas de muitas diferentes agências governamentais e, numa federação, de acordos entre os múltiplos entes federados. “Quanto não há concordância nem mesmo no primeiro escalão do Governo Federal, quando o presidente fala algo distinto do ministro da área, o problema é gravíssimo. O que deve pensar o cidadão quando o presidente tenta sabotar, por palavras e atos, as políticas sanitárias recomendadas pelo Ministério da Saúde de seu próprio governo?”, questiona.
Ainda segundo o pesquisador, que é mestre e doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, a dubiedade encontrada nos discursos de diferentes atores governamentais fragiliza a credibilidade das instituições.
“Os graves efeitos sanitários e econômicos que virão da pandemia demandarão uma capacidade de diálogo de todas as instituições e de todos os setores sociais, algo que não está ocorrendo adequadamente. Numa situação assim, com pessoas morrendo, perdendo empregos e renda, deveria haver lideranças políticas capazes de dar respostas sensatas. Não é o que acontece quando o presidente da República pensa apenas na preservação de sua base eleitoral, faz discursos receitando remédios para os doentes (sem qualquer certeza científica de sua eficácia até o momento), sabota as políticas defendidas pela OMS, pelos principais especialistas. Os efeitos dessa postura podem ser dramáticos.”