A rápida disseminação da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus, gerou consideráveis impactos nas formas de consumo e de mercado, incluindo aqueles relacionados à indústria da moda. Segundo a Câmara de Comércio Internacional, a moda, além da aviação e do turismo, é uma das três áreas mais suscetíveis à queda de vendas durante e após a pandemia. A esfera fashion da cultura não sofre apenas com questões financeiras, mas também estruturais, uma vez que é responsável por boa parte da mão de obra no mundo.
Em fevereiro, quando o vírus ainda não configurava uma pandemia, já se podia perceber a primeira das consequências: a ausência de consumidores, editores e estilistas vindos da Ásia nas principais semanas de moda europeias. Conforme a situação se agravava, grandes eventos passaram a ser cancelados, visando evitar aglomerações em pequenos espaços. No final de março, o Conselho Administrativo da Federação de Alta Costura e Moda da França (FHCM) precisou cancelar a Semana de Moda Masculina de Paris, que aconteceria entre 23 e 28 de junho, e a Semana da Alta-Costura, agendada para iniciar em 5 de julho. Em comunicado, a administração justificou se preocupar em garantir a segurança e a saúde de seus funcionários e todos os que trabalham na indústria, afirmando também estar buscando projetos alternativos.
Situações assim também ocorreram na Itália; com a Câmara Nacional da Moda Italiana adiando a Semana de Moda Masculina para setembro (o mesmo mês da Semana de Moda Feminina), e no Brasil; com a São Paulo Fashion Week cancelando seus desfiles agendados para o final de abril e o adiamento do evento Veste Rio, de abril para junho.
Coleções reduzidas
A professora do Bacharelado em Moda do Instituto de Artes e Design (IAD) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Débora Pinguello Morgado, reafirma as consequências da pandemia para o mundo da moda. “Tanto as marcas maiores, cuja divulgação acontece principalmente nos grandes desfiles, quanto as menores, que expõem seus produtos em eventos locais ou vitrines, já estão precisando adaptar o número e o tamanho de suas coleções. A produção de novas roupas, nesse momento, é inviabilizada devido às restrições de isolamento social, o que impossibilita uma aglomeração de funcionários produzindo peças. Além disso, os consumidores estão comprando menos; mais um fator para que as indústrias repensem o número de coleções para este ano.”
As medidas de isolamento social, ativas em países asiáticos há alguns meses, acabaram criando uma disrupção na cadeia de suprimentos dos mercados de varejo, uma vez que boa parte das entregas oriundas principalmente da China foram canceladas ou atrasadas. Dessa forma, o mercado varejista de roupas, calçados e esportes é diretamente prejudicado. Até mesmo as marcas que funcionam independente de peças chinesas sofrem impactos: com os shoppings fechados, a circulação de clientes deixa de existir, tal como a energia de compra e de consumo. Redes de lojas de fast fashion são as principais afetadas nesse quesito.
Live fashion show
Surge, então, a necessidade de se discutir mudanças voltadas não apenas para a sobrevivência da indústria da moda mas também para a sua permanência e consolidação pós-pandemia. Uma das principais alternativas se baseia na exposição e consumo online. Já em fevereiro, grandes marcas usaram do modelo virtual para expor suas coleções sem audiência física, através de live streamings de seus desfiles, como fez a italiana Giorgio Armani. O modelo também foi adotado pela marca À La Garçonne, de São Paulo. Procura-se, cada vez mais, criar uma plataforma digital onde os designers e os estilistas consigam mostrar suas criações, mantendo, entre outros quesitos, a possível cobertura da imprensa e as compras de revendedores.
O também professor de Moda no IAD e especialista em Moda, Cultura de Moda e Arte pela UFJF, Luiz Fernando Ribeiro, afirma que apesar das vantagens intrínsecas aos desfiles presenciais ao vivo, a tecnologia atual consegue compensar. “As vantagens do desfile ao vivo se baseiam principalmente na chance de se observar a roupa em um aspecto tridimensional. Você consegue observar outros elementos e traçar mais critérios, como o movimento, caimento, leveza do tecido, entre outros. No entanto, hoje, a evolução tecnológica da fotografia consegue trazer um pouco dessa magia para o virtual, possibilitando a existência de desfiles feitos por streaming, por exemplo.”
Moda solidária
Em busca de reduzir os impactos à indústria, muitas marcas criaram ações próprias de contenção à Covid-19. Todas as fábricas italianas do grupo Armani, por exemplo, passaram a produzir macacões médicos descartáveis para o uso de agentes de saúde durante a crise. Um consórcio de empresas têxteis da associação comercial Confindustria Moda, também na Itália, voltou-se para a produção de máscaras de proteção, em prol de tornar o país autossuficiente na produção dos itens. A professora Débora Morgado acrescenta que “é necessário que as empresas firmem pactos éticos para que possam se recuperar no momento pós-pandemia. Serão bem lembradas aquelas marcas que, hoje, se mobilizam para a produção de máscaras e aventais”.
Luiz Fernando Ribeiro explica que, ainda que a preocupação social de marcas têxteis inevitavelmente cresça no período de crise, não se configura como um fenômeno novo. “A moda já vem passando por essa transformação há uns cinco anos, se preocupando com sustentabilidade, conforto, segurança dos funcionários, pagamentos justos, direitos trabalhistas e outras questões. Temos, cada vez mais, uma busca de um preço justo pela roupa ou objeto que está sendo consumido, o que vai contra os lucros exorbitantes. Hoje, é preciso se pensar questões como o que a marca está oferecendo para seus clientes, qual o seu diferencial, o que ela oferece a mais. Não importa apenas a aparência, mas sim aquilo que está por trás, como a preocupação com o consumidor. É preciso pensar a longo prazo.”
Mudança de visão
Em linhas gerais, a pandemia do Covid-19 trouxe consequências irreversíveis ao mercado da moda, alterando permanentemente o conceito de consumo. Torna-se preciso ressignificar a forma como a indústria se comporta, repensando, por exemplo, os grandes impactos ambientais dos eventos de uma semana de moda. As revistas Vogue da Itália e de Portugal lançaram capas que refletem a atual situação e reduzem a preocupação com o consumo.
A doutora em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e convidada externa do corpo docente da especialização em Moda da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Lilyan Guimarães Berlim, classifica o momento atual como um período de profunda transformação. “O mercado reage a essas transformações falando de uma moda sem data de validade, uma moda que prega a inclusão de todos, a diversidade, o empoderamento. Essa pandemia pode ser um empurrão para que a indústria repense todo o comércio, incluindo os nossos hábitos e o nosso vestir cotidiano.”
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