Levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS) demonstra que 70% dos profissionais que atuam na linha de frente do combate ao novo coronavírus são mulheres. Talvez esta informação possa causar estranhamento àqueles que percebem um número maior de médicos homens no Brasil, contudo é preciso destacar que profissões menos valorizadas no campo da saúde são amplamente ocupadas pelas mulheres. Dados do Conselho Federal de Enfermagem, por exemplo, demonstram que as equipes de enfermagem no Brasil (enfermeiros, auxiliares e técnicos) são predominantemente formadas por mulheres, 84,6%.
Em tempos de crise epidemiológica, os números da OMS fomentam uma reflexão sobre como as mulheres são afetadas diretamente de forma brutal pela pandemia do novo coronavírus. Não só pela sua atuação em hospitais e postos de saúde, mas também por desempenhar funções como cuidadora de idosos, empregada doméstica, dentre outras pouco valorizadas, com remuneração mais baixa e funções, em sua maioria, relacionadas especificamente aos cuidados.
No Rio de Janeiro, a primeira vítima fatal do novo coronavírus foi justamente uma empregada doméstica. Aos 63 anos, a mulher que percorria 120 km para chegar ao trabalho, contraiu a covid-19 da patroa, que havia retornado há pouco tempo da Itália.
De acordo com Nara Carvalho, vice-coordenadora do programa de extensão Centro de Referência em Direitos Humanos (CRDH) e professora do departamento de Direito da UFJF-GV, a divisão sexual do trabalho é uma das formas de se perceberem relações de dominação em razão de gênero, sendo ela mesma fonte de violência às mulheres. Nara complementa que esta divisão foi reforçada na modernidade, sobretudo a partir da revolução industrial.
“Pela divisão sexual do trabalho, há funções tidas como femininas, especialmente relacionadas a afazeres domésticos (por vezes sequer percebidos socialmente como pertencentes à categoria trabalho), e a profissões voltadas ao cuidado com o outro (num desdobramento das funções supostamente naturais de esposa, mãe e dona de casa). À mulher, cabe servir, devendo ser especialmente devota à família e filhos, em um processo que a aproxima do estatuto de propriedade – mulher é mais objeto dos seus do que sujeito de si mesma”.
Nara ressalta que, historicamente, essa divisão de tarefas acaba colocando as mulheres em posição de inferioridade. “Elas, por exemplo, ingressam no mercado de trabalho, mas, mesmo quando mais qualificadas, recebem menos e raramente ocupam funções de chefia. Ao mesmo tempo, esse ingresso no mercado de trabalho não implicou distribuição equânime dos afazeres domésticos; as mulheres se dedicam mais aos trabalhos domésticos do que os homens e, por vezes, exercem dupla ou tripla jornada de trabalho.”
Para Denis Perdigão, professor do departamento de Administração da UFJF-GV e membro do Programa de Extensão Núcleo de Integração e Fortalecimento da Rede de Atenção à Mulher (NIFRAM), a divisão sexual do trabalho e vários outros mecanismos de ajustamento social foram historicamente utilizados no processo de subjugação da mulher aos interesses masculinos. “Somos ensinados, de geração em geração, no que devemos acreditar, sobre como devemos agir, pensar, ser, existir. Somos condicionados, homens e mulheres, a perpetuar o sistema de dominação social patriarcal construído socialmente ao longo dos séculos e milênios de nossa experiência humana. Vivemos, portanto, em uma perigosa prisão psíquica construída para perpetuar as relações sociais da maneira como foram estruturadas e legitimadas ao longo do tempo. Resolver este problema, nos libertarmos dessa prisão, é urgente e necessário para pormos fim ao ciclo de violências e dominações que tornam as mulheres vulneráveis”.
Trabalhos domésticos
Se por um lado as mulheres são afetadas diretamente pela sua atuação nas redes de saúde, por outro, de forma indireta, também são sobrecarregadas pela quarentena, uma vez que o aumento da carga de trabalho doméstico as atinge diretamente. Ou seja, as consequências da pandemia para as mulheres são ampliadas pela necessidade de isolamento social. A professora Nara destaca que os homens passaram a exercer mais atividades domésticas, porém cita dados do IBGE que demonstram que a diferença ainda é significativa. Em 2018, as mulheres não ocupadas no mercado de trabalho dedicavam 23,8 horas semanais a essas atividades, enquanto os homens, 12 horas.
“A tendência é que essa desigualdade permaneça nesse período de isolamento social, sobrecarregando as mulheres. É, portanto, um dos fatores de estresse das mulheres, que tem a sua carga mental ainda mais aumentada. É necessário, portanto, ficarmos atentos para uma melhor distribuição dessas tarefas, inclusive em nossas casas, e não apenas em tempos de pandemia”, ressaltou Nara.
De acordo com Nayara Medrado, professora do departamento de Direito da UFJF-GV e integrante do CRDH, a distribuição desigual de tarefas domésticas faz com que as mulheres sejam sobrecarregadas, mas ainda assim permaneçam, em regra, dependentes economicamente de homens, “O trabalho reprodutivo, exercido no interior do lar – o amamentar, cozinhar, educar, cuidar, limpar – é um trabalho essencial para a reprodução da nossa forma de sociabilidade, porque é o responsável por formar, manter e reproduzir a força de trabalho, mas é, ao mesmo tempo, trabalho não-pago e invisível: é trabalho extenuante, mas travestido de mera atividade de cuidado e de afeto que fomos convencidos se tratar de uma incumbência natural da mulher. Essa divisão faz com que as mulheres sejam sobrecarregadas em termos de trabalho – o que, por si só, tem uma série de implicações -, mas, ainda assim, permaneçam, em regra, dependentes economicamente de homens ou, alternativamente, ocupando postos extremamente precarizados”.
Coordenadora do NIFRAM e professora do departamento de Administração da UFJF-GV, Juliana Goulart, destaca que mesmo mulheres que não possuem problemas financeiros agravados com o isolamento, que moram em número pequeno de pessoas em uma residência, chegam ao fim destes primeiros dias de quarentena em completo colapso mental. “Recebemos diversos relatos de mulheres aos prantos porque se deram conta de que o marido não sabe nada sobre a educação da criança, que ele não sabe como cuida dessa criança, que não existe uma divisão de tarefas porque o homem na verdade nunca precisou se preocupar com a casa já que a mulher cuidava de toda a estratégia de compras e suprimentos para a casa, organizava toda a logística com a funcionária da residência, que é quem dava o almoço para a criança, e quando este homem chegava em casa ao anoitecer, mulher, casa e crianças estavam tranquilas lhes esperando para descansar”.
Juliana ressalta que a quarentena despertou em algumas mulheres uma percepção até então adormecida. “Temos um novo panorama de mulheres violentadas que antes não tínhamos (não que elas não fossem, mas muitas só agora percebem o cenário), mulheres que hoje relatam horas de choro pela demanda física e mental que estão carregando sozinhas e que nos dizem ‘no meio disso tudo eu ainda preciso ser mulher dele né, porque ele precisa relaxar, diz que está sob muita pressão’, numa clara referência às relações sexuais muitas vezes não consentidas que têm ocorrido neste período”.
Violência Doméstica
Levantamentos divulgados por organizações não-governamentais demonstraram que o número de denúncias de violência doméstica estão crescendo desde que as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa. Na China, primeiro país a adotar o isolamento, os números triplicaram. No Rio de Janeiro, a Justiça registrou um aumento de 50% no número de denúncias durante os primeiros dias de isolamento. “Esse aumento não surpreende: já era sabido que os atos de violência contra a mulher ocorrem majoritariamente no período noturno e nos fins de semana, momentos em que o agressor costuma estar em casa. O motivo imediato parece ser, portanto, o contato mais frequente do agressor com a vítima no espaço doméstico. Quanto aos motivos mais profundos, me parece ainda prematuro destrinchar, mas, como é próprio da nossa forma de sociabilidade, é difícil, senão impossível, dissociá-los do controle sobre as mulheres – em todas as suas complexas formas e linguagens – demandadas exatamente pela divisão sexual do trabalho e pela separação público-privado a ela relacionada”, afirma a professora Nayara Medrado.
De acordo com Juliana Goulart, os números de casos de violência doméstica tendem a ser ainda maior uma vez que grande parte das mulheres, inclusive aquelas que perceberam pela primeira vez a violência, não têm coragem de denunciar. “Estas mulheres na enorme maioria das vezes não irão denunciar, por dois motivos, o primeiro que ela entende que é algo passageiro, condicionado ao período de isolamento, e que ela pode ‘suportar’ estas violências por este curto espaço de tempo; e o segundo motivo é porque elas têm muita vergonha (assim como todas as mulheres a vergonha por sofrer a agressão faz parte do ciclo da violência) de dizer para um ator público (como polícia e promotoria, por exemplo) o que está se passando dentro da sua casa. Muitas relatam ‘imagina como que eu, que ocupo o cargo X na organização X vou parar na delegacia pra dizer que estou sofrendo violência, não pega nem bem pra minha carreira né, eu sou uma mulher independente, forte’, como se houvesse um perfil de mulher que sofre a violência”.
De acordo com Juliana, mulheres já violentadas em casa antes mesmo do isolamento também preferem manter o silêncio. “Na residência de mulheres que já antes do isolamento sofriam violências, inclusive físicas, e tinham os seus momentos de escape durante o dia e a semana, que é quando ela ou o agressor estavam trabalhando fora, o que temos percebido é que o ouvir e o falar tem se tornado cada vez mais difícil com o isolamento. Mulheres antes já silenciadas agora apenas escutam e acatam ‘pelo bem da casa’. Os períodos do ciclo da violência de acúmulo da tensão e ataque violento predominam e o espaço para o período chamado de lua de mel, em que a vítima é reconquistada, não está havendo. Esta mulher entende muitas vezes que neste momento de isolamento ‘ele está sob muita pressão’ e torna a violência algo inerente ao período. Por fim, nossas duas mulheres se encontram neste momento, assumindo pra si a carga que lhes ensinaram lá na infância do que é ser mulher”.
Denúncias violência contra a mulher em Governador Valadares
Preocupada com o aumento da violência doméstica neste período de quarentena, a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência em Governador Valadares ampliou os canais de comunicação para que as denúncias possam ser feitas sem dificuldade e respeitando o isolamento social. Além do 190, os denunciantes podem entrar em contato diretamente com a promotoria de justiça através do Whatsapp ou chamada telefônica no telefone (33) 99117.8699; ou com a Delegacia da Mulher no telefone (33) 99994.8846.
“Temos percebido que como mais pessoas estão em casa e convivendo com a rotina de vizinhos antes silenciados pela distância dos dias trabalhados fora, alguns vizinhos têm feito denúncias, e é essa mensagem que queremos deixar, seja uma mão para esta mulher, ajude, acolha, olhe para ela com empatia e meta a colher nesta violência que você agora não pode dizer que não sabe que está acontecendo”, destacou Juliana Goulart.