“A Medida Provisória é um prolongamento do modo de legislar sem diálogo social”. Foi assim que a professora de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Karen Artur, reagiu à Medida Provisória (MP) do Governo Federal, publicada no Diário Oficial da União na última segunda-feira, 23, que dispõe sobre alternativas trabalhistas em virtude da pandemia do novo coronavírus. A MP, que entra em vigor na data da publicação, com força de lei, precisa ser votada pelo Congresso Nacional em 120 dias; do contrário, perde a sua validade.
Algumas das possibilidades previstas no texto da Medida Provisória dizem respeito ao teletrabalho (trabalho à distância, como home office); regime especial de compensação de horas no futuro, em caso de eventual interrupção da jornada de trabalho durante calamidade pública; suspensão de férias para trabalhadores da área de saúde e de serviços considerados essenciais; antecipação de férias individuais, com aviso ao trabalhador pelo menos 48 horas antes; concessão de férias coletivas; aproveitamento e antecipação de feriados; suspensão de exigências administrativas em segurança e saúde no trabalho; e adiamento do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS); dentre outras.
Segundo Karen, a MP não faz frente aos objetivos centrais do enfrentamento da crise, que seriam o isolamento social; a garantia de renda mínima; o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Ciência; e o respeito às normas de saúde e segurança do trabalho; além do diálogo social articulado entre todos os setores afetados. “Ela não trata dos trabalhadores desprotegidos, por exemplo, aqueles que fazem entrega por aplicativo, os quais sequer possuem mapeamento dos riscos sanitários. Logo, o Direito do Trabalho, quando tratado apenas como uma simples relação privada, reforça a desigualdade de poder entre trabalhadores e empresas, com efeitos sociais que vão para além dessas partes. A Constituição Federal de 1988 traz um pacto que tem como pilar o valor social do trabalho”, aponta.
Para a especialista em Direito do Trabalho, as medidas devem ser acompanhadas para não produzirem um ambiente institucional ainda mais precário, que pode instalar-se definitivamente quando a crise passar. “No limite, não são férias, as pessoas não estão descansando. No caso do teletrabalho, deve-se ficar atento para que os custos organizacionais não recaiam sobre o trabalhador, nem sejam exigidas metas abusivas, pois eles também estão cuidando de seus familiares. O afastamento das instituições públicas do trabalho das suas funções de fiscalização e de acompanhamento da situação é temerário para a saúde, além de inconstitucional, pois a Carta Cidadã afirma que o Estado tomará medidas para compor um ambiente laboral sadio. De todo modo, as reações à MP já indicam a construção de consensos para evitar que os prejuízos recaiam exclusivamente sobre os trabalhadores.”
Após forte repercussão social, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse, ainda na segunda-feira, que revogou o artigo 18 da Medida Provisória, que previa a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses, sem contrapartida do Governo. “A reação da sociedade civil e de atores governamentais à medida foi forte. A suspensão dos contratos, sem o recebimento de qualquer benefício, já está sendo revista, por pressão desses setores. Os trabalhadores não podem arcar com os riscos das atividades – isso é um princípio jurídico – muito menos em tempos de grave crise humanitária”, comenta Karen.
OAB e advogados trabalhistas criticam MP
Também na segunda-feira, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional divulgou nota técnica sobre a Medida Provisória. Segundo o documento, a MP contém violações de garantias mínimas asseguradas aos trabalhadores pela Constituição Federal, além de prejuízos à sua integridade física.
O parecer foi elaborado em conjunto com a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat) e ressalta que os dispositivos extrapolam os limites da decretação de calamidade pública e infringem uma série de diretrizes constitucionais que impedem a implementação das medidas, mesmo neste momento de grave crise sanitária.
O estudo ainda aponta uma desarmonia da MP com os princípios básicos do Direito Trabalhista e com a Constituição, ao fomentar a celebração de acordos de trabalho individuais, dando ao empregador o poder exclusivo sobre matérias coletivas, além de suprimir garantias básicas à sua saúde e segurança com a suspensão de exames médicos ocupacionais de trabalhadores submetidos a uma inédita carga de exposição a riscos. A Medida Provisória prevê a suspensão da Fiscalização do Trabalho por 180 dias após a sua edição.