“A única coisa que separa mulheres não-brancas de qualquer outra pessoa é oportunidade.” Com essas poderosas palavras, a atriz norte-americana Viola Davis se tornava a primeira mulher negra a ganhar na categoria de melhor atuação em uma série de drama no Emmy. O acontecimento se deu em 2015, após 67 anos de premiação. A vitória tardia é apenas o reflexo de um problema que aflige todos os setores da indústria do entretenimento.
Em 2018, dos 100 filmes mais lucrativos de Hollywood, apenas quatro eram dirigidos por mulheres. Destes, o único que possuía um diretora negra era a adaptação literária “Uma Dobra no Tempo”, da cineasta Ava DuVernay. Os dados são do relatório “Inclusion in the Director’s Chair”, realizado pela Universidade do Sul da Califórnia, que analisou a produção cinematográfica norte-americana pelo viés da inclusão e da pluralidade atrás das câmeras.
No Brasil, a situação se agrava. Entre 1970 e 2016, 98% dos filmes com grande público, ou seja, acima de 500 mil espectadores, foram dirigidos por homens. O dado foi revelado por um levantamento realizado pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), publicado no boletim Raça e Gênero no Cinema Brasileiro. Dentre os alarmantes 2% de mulheres na direção, o relatório chama a atenção para o fato de nenhuma delas ser negra.
Na semana em que é realizado o Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades, nós convidamos estudantes negras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), que se empenham ativamente para mudar esse cenário de desigualdade. O festival, que acontece anualmente na cidade, sempre conta com grande participação estudantil, tanto na Mostra Regional quanto na internacional.
“Em um primeiro momento, quando percebi essa falta de representatividade, fiquei indignada e pensei que queria muito fazer alguma coisa para mudar essa realidade desigual, mesmo que fosse com uma pequena contribuição”, conta e estudante da Faculdade de Comunicação Social (Facom), Letícia Silva. Para ela, o levantamento foi o suficiente para motivá-la a realizar seu primeiro filme, “Janaína”. O roteiro gira em torno da protagonista, que dá título ao curta-metragem, tentando lidar com a ausência de sua única filha, que decide sair de casa. Para a estudante, a história reflete uma experiência comum da maternidade. “Janaína teve uma vida como muitas de nossas mães. Decide abdicar dos próprios desejos em função do outro. Dedica atenção e cuidados para o outro, sem enxergar seu próprio corpo como independente no mundo”, reflete.
Na frente da câmera, o elenco é completamente negro e majoritariamente feminino. Nos bastidores, uma das principais preocupações de Letícia foi escalar uma equipe diversa, que contasse com mulheres negras em funções criativas. A diretora espera que seu primeiro filme ofereça a oportunidade de conhecer ainda mais profissionais da área. “Nós, cineastas negros, estamos falando de um mesmo grande tema de formas diferentes. Como temos o objetivo de criar um novo olhar, acabamos criando uma rede e eu espero fazer parte dela.”
Se há poucas mulheres negras na direção, a falta de diversidade é ainda maior nos outros setores da produção cinematográfica. O relatório “Inclusion in the Director’s Chair” também analisou as equipes dos 300 filmes mais populares entre 2016 e 2018. Nesse período, as mulheres negras representavam apenas 1,6% dos profissionais na área de produção, 1,5% na direção de arte e 1,4% na edição. No setor de fotografia, responsável pela iluminação dos filmes, nenhuma mulher não-branca foi creditada.
Para observar essa desigualdade de raça e de gênero no cinema, basta olhar a principal premiação da indústria do entretenimento: o Oscar. Ao longo de 91 anos, apenas cinco mulheres foram indicadas na categoria de Melhor Direção, todas elas brancas: Lina Wermüllher, Jane Campion, Sofia Coppola, Kathryn Bigelow e Greta Gerwig. Outras categoria tiveram suas primeiras indicadas negras apenas nos últimos anos. É caso de Joi McMillon, em 2016, por Melhor Edição em “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, e de Dee Rees, em 2017 na categoria de Melhor Roteiro Adaptado pelo filme “Mudbound – Lágrimas Sobre Mississipi”.
No período entre 1970 e 2016, o levantamento feito pelo Gemaa só conseguiu identificar uma única roteirista negra no cinema brasileiro de grande público: Julciléa Telles, que co-escreveu a pornochanchada “A Gostosa da Gafieira”. Na frente das câmeras, como apontam as responsáveis pelo estudo, a maior desigualdade também se dá na variável da raça. Ao todo, 60% das histórias narradas têm protagonismo masculino, destes, 50% são homens brancos. Em contraposição, as mulheres negras representam apenas 2% dos elencos principais.
A estudante do curso de Cinema do Instituto de Artes e Design (IAD) da UFJF, Luiza Amorim, vê na inserção de profissionais negros na frente e atrás das telas como um caminho para um cinema mais diverso. Durante a graduação, ela participou de diversas produções universitárias, transitando entre diferentes setores, como a iluminação, a cenografia e a captação de som. Ela conta que, em suas experiências, nunca foi a única mulher participando dos projetos, mas já chegou a ser a única pessoa negra. “Acredito que seja importante para nós nos colocarmos num papel ativo, buscando conhecer outras mulheres negras que trabalham com audiovisual, para que possamos criar laços e trocar experiências.”
A visão é compartilhada pela estudante egressa, Bárbara Maria, diretora do curta-metragem “Pele de Monstro”. A partir de relatos e reações de estudantes negros da Universidade, o documentário relaciona racismo com obras clássicas do gênero de terror. “Quando percebi que várias situações que via em filmes e na televisão se pareciam com a minha vida, resolvi fazer um documentário. Eu achei mais fácil fazer essa relação com monstros, porque era algo ligado à aparência. Minha intenção era mais fazer um paralelo e ver se as pessoas negras que convidei para assistir os filmes se identificavam”, explica. Desenvolvido como trabalho de conclusão do curso de Cinema, o filme foi premiado no festival Primeiro Plano de 2017, sendo também selecionado para outras mostras ao redor do país. Para Bárbara, é essencial que pessoas negras ocupem cargos criativos como uma forma não apenas de diminuir a desigualdade, como também de quebrar estereótipos. “Quem vai falar melhor sobre um grupo do que as próprias pessoas desse grupo?”