Imagine-se na savana africana. Sob um sol escaldante e entre as gramíneas e os arbustos que cobrem as grandes extensões de terra, dois amigos fogem desesperados de uma leoa voraz. Caçadora nata, ela pode atingir grandes velocidades em um curto espaço de tempo. O primeiro amigo, vendo a impossibilidade da fuga, sugere que correr é inútil, já que eles nunca vão superar o animal. Prontamente, o segundo amigo rebate: “eu não preciso correr mais do que ela, eu preciso correr mais do que você.”
“Quem ficar para trás, vai ser comido pelo animal. Quem sobreviver, vai deixar descendentes. Isso significa que ele tem maior valor adaptativo”, explica o professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Lyderson Viccini. A anedota, usada por ele dentro de sala, ilustra, em termos simples, o conceito de aptidão, que figura como fator determinante na seleção natural. Publicada pelos britânicos Charles Darwin e Alfred Wallace em 1859, a teoria surgiu como uma das mais significativas formas de explicar o sucesso adaptativo que ocorrem nos organismos ao longo do tempo.
O termo “teoria” pode causar confusão ao sugerir que ela se resume apenas à uma especulação. Considerando o método científico, essa noção pode até ser verdadeira, já que toda teoria começa com perguntas e hipóteses. No entanto, o termo segue sendo empregado mesmo após a sua comprovação, pois carrega consigo outro significado: o de um conjunto de princípios fundamentados através de estudos que, quando aplicados em um área específica, servem para categorizar, classificar e interpretar as realidades da natureza.
Fruto de um processo extenso de observações e estudos feitos em expedições intercontinentais, o darwinismo foi apenas o começo dos desdobramentos científicos que constituem a teoria da evolução como conhecemos hoje. Viccini explica que o advento de novas tecnologias e ferramentas de investigação possibilitaram enxergar os processo evolutivos de uma maneira que não era possível para Darwin. “A seleção natural não é o único processo evolutivo. Com o passar do tempo, foram adicionados novos elementos ao modelo. Isso não muda a teoria da evolução no seu sentido clássico.”
Um monge no jardim
Interessado em investigar padrões na hereditariedade, o professor, cientista e monge austríaco Johann Gregor Mendel seria o responsável por uma inédita contribuição ao entendimento da hereditariedade. Através da observação de ervilhas, o cientista percebeu padrões particulares na maneira como certas características – entre elas altura, cor da flor e formato da semente – eram herdadas ao longo das gerações das plantas. O modelo de herança proposto por Mendel foi a base para questões fundamentais da genética, como o comportamento dos genes e a presença de características dominantes e recessivas – ou seja, aquelas que, se conferirem maior valor adaptativo, possuem maior frequência na população, e aquelas que, mesmo não se manifestando, permanecem na população.
Mendel foi contemporâneo de Darwin, apresentando suas conclusões poucos anos depois da publicação do livro “A Origem das Espécies”. No entanto, devido à distância e a baixa velocidade com que a informação era disseminada na época, o monge austríaco nunca teve acesso ao trabalho do naturalista britânico, ou vice-versa. Na verdade, o trabalho de Mendel só ganharia destaque após a sua morte, no início do século XX, quando foi redescoberto pela comunidade científica.
As descobertas da genética preencheram um espaço significante na teoria de Darwin, especialmente ao substituir o conceito de herança através da mistura de sangue, para dar lugar ao funcionamento dos genes. Com a redescoberta dos trabalhos de Mendel, surge a teoria sintética da evolução, também conhecida como neodarwinismo. A frequência dos genes nas populações passa a ocupar um lugar importante na interpretação dos processos evolutivos. “O valor adaptativo, nessa interpretação, está associado à manutenção de genes na população que fazem com que ela seja mais adaptada em relação a uma outra. Enquanto os fatores forem importantes para a sobrevivência, eles mantém maior frequência na população”, explica Viccini.
O professor explica que até mesmo o valor adaptativo, visto como essencial para o darwinismo, pode assumir um papel coadjuvante. É o caso da teoria neutralista, proposta pelo geneticista japonês Motoo Kimura no final da década de 1960. Afastando-se da noção de que o gene herdado é somente aquele que propiciou uma melhor adaptação, o neutralismo explora a deriva genética. Desta forma, considera que algumas variações genéticas não estão necessariamente sujeitas à ação da seleção natural, podendo acontecer ao acaso.
Somos todos mutantes
“Toda variação genética pode ser tratada como uma mutação, e ela pode mudar o perfil de uma população ao longo do tempo”, explica Viccini. Apesar do termo estar sempre associado apenas ao que é diferente ou pouco frequente, as mutações são parte dos processos evolutivos. Elas são caracterizadas como alterações súbitas e herdáveis no material genético, acontecendo de maneira espontânea e, à princípio, aleatória. “Existem alguns lugares do genoma que nós chamamos de ‘hot spots’ – os pontos quentes. Aparentemente, eles são mais suscetíveis à mutação do que outras regiões, mas o motivo para isso ainda não está definido.”
As mutações geralmente acontecem no processo de replicação, durante o qual as moléculas de DNA estão expostas a possíveis erros. É nesse momento em que o material genético é copiado para uma nova célula, e os nucleotídeos (pequenas estruturas que constituem o DNA) têm suas ligações rompidas e refeitas por diferentes enzimas. O processo acontece simultaneamente e qualquer mudança na sequência de bilhões de combinações que constituem o genoma, por exemplo, pode ser considerada uma mutação.
Existem inúmeros fatores externos que podem aumentar a frequência de mutações em uma população, como agentes físicos ou químicos. Contudo, mesmo na ausência deles, existe a possibilidade de que elas ocorram espontaneamente. Viccini explica que, do ponto de vista evolutivo, uma mutação só tem importância se ela for transmissível para a próxima geração. É o caso do acidente radiológico do Césio-137, em Goiânia, e a explosão da usina nuclear em Chernobyl, na Rússia, cujos os efeitos podem ser observados na saúde dos que foram atingidos diretamente e também nos seus descendentes. “Uma exposição da pele à radiação ultravioleta, por exemplo, mesmo que cause uma doença ou um câncer, não será transmitida. Diferentemente, uma radiação que possui uma alta penetração de tecidos, como a gama, terá efeitos hereditários.”
Como enxergar a evolução?
Já ouviu falar sobre alguém que criou resistência a algum antibiótico? O pesquisador explica que essa é uma das formas de enxergar um processo evolutivo acontecendo em um curto espaço de tempo. “Você não ‘cria resistência’. Na verdade, você tem um conjunto de bactérias e um conjunto de genes. Esse conjunto tinha um dado perfil genético. Quando você toma um antibiótico, só sobrevive uma pequena parcela da população. Não foi o antibiótico que induziu o surgimento dos mutantes, eles já estavam lá, só que em um ambiente que ainda não havia permitido que ele se expressassem de forma visível. O que acontece na geração seguinte é que essas bactérias que sobreviveram vão se multiplicar, então essa colônia não tem o mesmo perfil genético da primeira.”
Um exemplo clássico são os famosos tentilhões de Darwin. Os pássaros, observados na Ilha de Galápagos, no Equador, foram eternizados no mundo científico pelo livro “A Origem das Espécies”. Em sua expedição, o naturalista britânico investigou as diferentes espécies da ave que habitavam a ilha, levando em consideração a relação entre os formatos dos bicos, a alimentação e o ambiente no qual elas estavam inseridas. Posteriormente, novos estudos documentaram a variação dos organismos em função de uma intensa seca na região. “O tamanho do bico dos pássaros estavam associados ao tamanho das sementes que eles comiam. Durante a seca, houve uma escassez que mudou o tipo de alimento disponível. Plantas que produziam sementes maiores eram mais resistentes à seca e com isso aumentou a frequência de pássaros com bicos maiores.”
À longo prazo, os processos evolutivos podem ser observados a partir da similaridade por ancestralidade e pelo registro fóssil. No primeiro, dois organismos parecidos compartilham características com um ancestral em comum. Desta forma, pode-se estabelecer uma relação entre diferentes gerações a partir da semelhança. Esse é o caso que liga os primatas aos Homo sapiens. No segundo, há a possibilidade de identificar populações que viveram no passado e reconhecer estruturas similares às que estão presentes nos organismos vivos. “Através da descoberta e datação de fósseis é possível enxergar como se deram as mudanças ao longo do tempo. Por exemplo, é possível estabelecer como era o ser humanos em termos de altura, tamanho de membros, crânio, mandíbula.”
“A evolução está mais do que demonstrada, não é uma questão de acreditar ou não”
Uma teoria em evolução
Assim como nos últimos 160 anos desde que foi publicada, a teoria da evolução permanece em constante movimento. Seus avanços e desdobramentos continuam intrínsecos ao surgimento de novas ferramentas de investigação. Viccini ilustra a situação dando o exemplo de um trabalho que desenvolveu com uma planta de interesse medicinal, cujo tamanho do genoma aparentemente influencia no perfil químico da planta. “Há coisas que a gente ainda não sabe explicar no plano do detalhe, mas isso não quer dizer que elas não se enquadrem nos processos evolutivos principais. A teoria da evolução é consolidada, mas não é imutável. Ela pode ser acrescida de novos processos, novas ideias e elementos que venham a explicar fatos que já foram observados no passado, mas não puderam ser explicados naquele momento.”
Quanto ao embate com o criacionismo religioso, que parece perseguir a teoria da seleção natural desde sua concepção, o professor acredita que a discussão seja de foro íntimo. Para ele, a religião não é necessariamente incompatível ao ambiente científico. No entanto, é missão do indivíduo saber divisar onde uma esfera termina e a outra começa. “A evolução está mais do que demonstrada, não é uma questão de acreditar ou não”, conclui.