Os negros – pretos e pardos – representam 54% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, ao se observar os espaços de poder e decisão nos setores público e privado esse percentual não encontra correspondência. A situação é agravada quando se procura por mulheres negras nessas instâncias. De acordo com a doutora em Serviço Social e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Magali da Silva Almeida, é fundamental a reflexão sobre os impactos dos marcadores classe, raça e gênero, para se compreender a história brasileira e avançar no processo de democratização do país. A pesquisadora esteve na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para ministrar disciplina sobre o assunto no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social. Na ocasião, conversou com o Portal da UFJF sobre como as relações de poder patriarcais e raciais perfilam o padrão civilizatório de desenvolvimento brasileiro e sobre os desafios urgentes que esta realidade impõe.
Portal – Como os marcadores raça, classe e gênero atuam em nosso país?
Magali Almeida – Esses marcadores conformam a vida de milhares de mulheres negras e indígenas. Essas questões fazem parte da história brasileira, ou seja, da formação da sociedade brasileira. As relações de poder patriarcais e raciais perfilam o padrão civilizatório de desenvolvimento adotado aqui, no Brasil, pelas classes dominantes, produzindo desigualdades, apesar das resistências dos grupos subalternizados. Falar sobre o racismo é central para a compreensão dessa ideologia de dominação que estrutura conceitos, organização do trabalho, divisão sexual do trabalho. A partir desses marcadores, são definidos os lugares sociais para os diferentes grupos de raça e gênero. A princípio, eu diria que, ao falar desses marcadores, nós estamos falando da formação sócio-histórica brasileira e dos seus desdobramentos nos dias atuais.
Portal – Comente, por favor, o possível agravamento deste cenário na atual conjuntura, na qual há negativa, por parte do Executivo Federal, das desigualdades de raça e gênero. Por outro lado, mesmo nas Universidades, que são espaços de resistência aos conservadorismos, há também certa dificuldade com desigualdades raciais. Um exemplo é o ainda reduzido número de instituições com política de cotas nos cursos de pós-graduação…
Magali Almeida – Essa provocação que você faz na sua pergunta me leva a pensar como o racismo opera no Brasil. Você trouxe como exemplo depositário dessa ideologia o Executivo. No entanto, ao mesmo tempo, você traz indicadores reais de que esse tema ainda é polêmico dentro da própria Universidade, que é um espaço plural e de resistência ao modelo e ao projeto neoconservador do Executivo. Isso demonstra que o racismo está presente nos dois lados. Tanto no projeto do Executivo como também ainda permeia a Universidade, na medida em que a gente não reconhece a cota racial como um direito constitucional. Isso demonstra a existência de setores que não compactuam, obviamente, com a política e o projeto do Executivo, mas ainda bebem numa ideologia racista.
Portal – Tão sério quanto negar o racismo é acreditar que não há conflito racial?
Magali Almeida – Tão sério quanto negar o racismo é acreditar que não há conflito racial! A gente reconhece que há desigualdade, mas a gente silencia diante delas, não é? E, assim, não cria ou não defende políticas que possam enfrentar essa situação. Quando a gente percebe que a Universidade ainda tem resistência à implementação da política de cotas, isso significa que ainda há uma certa dificuldade intelectual e política de analisar o racismo do ponto de vista da teoria social. Em outros termos, ele está na sociedade. O racismo faz parte da cultura brasileira, da cultura mundial, porque, enquanto ideologia, tem uma função importantíssima no azeitamento dessa estrutura social. Uma das funções do racismo é, como vários ativistas do movimento negro afirmam, promover ganhos para alguns grupos. Alguém ganha com o racismo. O racismo é produzido pela estrutura de supremacia branca. Mesmo que algumas pessoas brancas não sejam consignatárias do racismo, que tem muitos aliados antirracistas, independentemente dessa questão, a branquitude lhes traz privilégios. Mesmo você não concordando com a estrutura racial. É contraditório isso. Percebo que, ao ter esse privilégio garantido por conta da existência de uma estrutura que trata seres humanos de peles diferentes de forma desigual, isso pra mim é um caldo, uma expressão viva do racismo. Nós estamos num momento na vida brasileira que a população negra não tem mais paciência para esperar quem quer que seja entender que a sua vida está sendo objeto da ação violenta de Estado. Então, agora é hora de lutar. Se a Universidade reconhece essa situação, ótimo. Se não reconhece, tensionaremos. Não tem outro caminho.
Se a Universidade reconhece essa situação, ótimo. Se não reconhece, tensionaremos. Não tem outro caminho.
Portal – É importante que o racismo seja uma temática transversal nas Universidades, ou seja, que todos os cursos debatam a desigualdade racial? Comente, por favor, sobre a necessidade de engajamento das pessoas brancas na luta antirracista.
Magali Almeida – Nem todos os alunos entram racistas da Universidade. Alguns alunos negros podem reproduzir o racismo, mas a grande maioria entra na Universidade sabendo o que é o racismo, porque vive essa experiência na pele. Os alunos brancos podem ser racistas, mas nem todos. A Universidade é um espaço de formação. A primeira coisa que a gente deve trazer para o debate é que tipo de formação essa Universidade pretende conduzir e que tipo de estudante ela quer formar. Então, é necessário esse questionamento epistemológico – o porquê, o para quê – que é uma discussão que não é nova, mas é nova para o enfrentamento do racismo. As Lei 10.639 e a Lei 11.645 tornam obrigatórios o ensino da África e da História do Brasil e dos povos indígenas nos cursos de nível superior e nos ensinos fundamental e médio. Essas legislações partem de uma iniciativa de projetos do movimento negro brasileiro. Isso não foi da esquerda branca. Foi uma conquista do movimento negro brasileiro. Essas legislações colocam como parâmetro uma perspectiva possível de um projeto de educação para as relações étnico-raciais. Isso significa a necessidade de entender a Universidade não como um espaço de formação de episteme única e exclusivamente eurocêntrica, ou seja, é o perigo da história única. A gente precisa entender a Universidade como um espaço plural que incorpore saberes, propostas epistêmicas de todos os segmentos portadores de humanidades. Portanto, populações negras, populações indígenas, povos ciganos. E esse movimento de incorporação é fundamentalmente necessário. Nós não podemos mais pensar a Universidade brasileira como uma Universidade de elite uma vez que os dados mostram que essa Universidade foi democratizada. E é nesse projeto que a gente acredita e que a gente vai defender, apesar do Executivo Federal e seus ministérios estarem propondo uma política absolutamente monolítica, contrária a todos os direitos conquistados pela classe trabalhadora brasileira e suas instituições. Dentro dessa classe, que não é neutra, não é asséptica, ela tem cor, ela tem raça, ela tem gênero, ela tem sexualidade. Essa classe sempre foi colorida. Ela não foi unitonal, apesar dos estudos não olharem para essa perspectiva. A gente tem visto recentemente que autores colocam a necessidade de pensar essa classe trabalhadora brasileira, que ao meu ver é negra. Até porque somos maioria. Eu diria que, de qualquer modo, apesar de a gente não ter na maioria dos cursos uma transversalidade – e não tem porque há racismo, há sexismo e há homofobia – esses marcadores estão juntos, fazendo com que ainda se mantenha um padrão de educação assentado dentro de um conceito extremamente conservador de projeto civilizatório. Isso faz com que a gente corra o risco de não tornar esse Brasil melhor, mais equânime, à medida que os nossos estudantes não possam sair diferentes do que entraram. Mas eu tenho a impressão de que eles saem de uma forma diferente, sim. O tensionamento é bacana, faz com que, mesmo que eu resista, algum registro fique. A Universidade é uma instância, uma dimensão da vida pública. Ela não é a vida pública exclusivamente. A gente precisa resgatar outros espaços de experiência coletiva que coloquem no cenário a disputa de projeto político, por isso defendo a democracia em todas as instâncias da vida das quais eu participo.
Portal – Há alguma questão que você queira acrescentar sobre a sua vinda à UFJF?
Magali Almeida – Eu acho que a iniciativa da UFJF é fantástica. Quero agradecer ao professor Marco José Duarte pela ousadia de trazer para o curso de Pós-Graduação em Serviço Social essa dimensão da formação que é extremamente importante. A formação em Serviço Social traz hoje requisitos, parâmetros para a inclusão do debate para a educação das relações étnico-raciais, obedecendo as legislações da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Quando falamos de Lei 10.639 e Lei 11.645 não estamos falando de qualquer lei. Estamos falando de uma Lei Federal. De acordo com esse parâmetro normativo, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa coloca, para as unidades a ela filiadas, a necessidade de incorporação da transversalidade desses temas na formação. Acho que o professor Marco, ao propor a disciplina, além de inovar, está desenvolvendo uma ação articulada ao que hoje a associação coloca como tema. Acho que essa disciplina muda a história da UFJF, porque oportuniza muitas mulheres negras e homens negros e não-negros, que estão presentes neste curso, a pensar o racismo e o sexismo como venenos nocivos à democracia e ao desenvolvimento pleno da democracia. Então, eu sou só agradecimento e gratidão.