Se no Brasil de 500 anos atrás, “todo dia era dia de índio”, atualmente é necessário muito esforço para fazer valer o verso da canção de Jorge Ben. É por isso que a Universidade Federal de Juiz de Fora em Governador Valadares (UFJF-GV) desenvolve uma série de ações para manter a questão indígena sempre em cena e também para não restringir o debate a apenas um dia e mês do ano: 19 de abril. A mais recente dessas iniciativas foi realizada pelo setor de Comunicação, Cultura e Eventos (CCE) do campus na última quinta-feira, 9, com a exibição de filmes e a realização de rodas de conversas sobre saúde e esportes dos índios.
O Cine Acadêmico apresentou o documentário “Ehcimakî Kirwañhe: um debate na saúde indígena”. A produção da Fiocruz aborda a estruturação e o funcionamento da rede de atendimento aos indígenas na região de Mapuera, oeste do Pará. A discussão girou em torno da medicina tradicional, da demanda pelo serviço de saúde indígena e da relação com as diferenças.
A prática esportiva também fez parte da pauta das discussões. Integrantes das comunidades indígenas falaram sobre os jogos que realizam em suas aldeias e a importância deles para a cultura de cada povo.
As atividades integraram a programação da Semana de Valorização da Cultura Indígena – parceria do CCE com a Secretaria de Cultura, Esporte, Lazer e Juventude de Governador Valadares, Fundação Nacional do Índio (Funai) e Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Minas Gerais (Fetae/MG) – contaram com a participação de estudantes do campus e foram mediadas por líderes das etnias Krenak e Pataxó e pelo pesquisador Messias Basques.
“Temos que nos mobilizar para que mais indígenas integrem a universidade e para que ela seja um espaço cada vez mais dinâmico, plural e que atenda aos diferentes grupos sociais” – Flávia Carvalho
A produtora cultural da UFJF-GV, Flávia Carvalho, explica que a região é marcada historicamente pela presença de grupos indígenas, notadamente os Krenak, que fazem parte do contexto do desenvolvimento de Governador Valadares. Por isso, ela entende ser “obrigação” da universidade se dedicar à temática.
Carvalho também chama a atenção para a baixa presença de indígenas na universidade. Segundo um estudo da Andifes – associação que reúne dirigentes de instituições de ensino superior –, realizado em 2014, apenas um por cento das comunidades acadêmicas do país era formada por índios. Diante desse cenário, a produtora cultural acredita que atividades como a da última quinta-feira, além de contribuir para a formação dos estudantes, “permitem que os índios possam visualizar a universidade como um espaço propício para a entrada e formação deles”. E reforça: “Temos que nos mobilizar para que mais indígenas integrem a universidade e para que ela seja um espaço cada vez mais dinâmico, plural e que atenda aos diferentes grupos sociais”.
Mais índio e menos preconceito
Feche os olhos por um momento e pense em um índio. Provavelmente, as primeiras imagens que virão à sua mente são cocares, penas e tinturas no corpo. Modificar este pensamento é o desejo dos nativos. Não que os elementos característicos tenham deixado de pertencer à cultura indígena, é que para esses povos, ser índio vai muito além desse estereótipo.
Segundo o cacique Baiara, a sociedade ainda tem aquela ideia de que “para ser indígena tem que andar com a roupa característica, pintado”, como há cinco séculos. Na opinião dele – que é membro da aldeia Gerutukunã Pataxó, em Açucena – o trabalho de divulgação nas escolas e universidades é importante, já que ajuda a quebrar preconceitos e a fazer com que o índio seja visto “como um cidadão, não como um animal qualquer”.
A sociedade ainda tem aquela ideia de que “para ser indígena tem que andar com a roupa característica, pintado” – Cacique Baiara
Sobre uma suposta aculturação de alguns povos, a indígena Shirley Djukurnã, da etnia Krenak, é enfática: “aculturado é quem se esquece do seu passado”. Para ela, é perfeitamente possível conviver fora do ambiente das tribos sem que isso descaracterize a condição de índio.
“Nós [indígenas] não somos aculturados pelo fato de fazermos uma faculdade, de usar um tênis de marca ou um celular. Isso não nos faz menos indígena. Nós temos um passado que é vivido 24 horas por dia. E a gente vive isso e não deixa isso morrer, mesmo usando uma calça, vestindo uma blusa, voando de avião. Isso não faz com que nós percamos a nossa questão cultural. A gente só está aderindo a um ambiente ao qual fomos inseridos de uma forma que não pedimos. Mas a gente está sendo muito inteligente para se adequar a isso tudo sem deixar que isso tome conta da nossa ancestralidade. Aculturadas são as pessoas que não sabem quem são, de onde vieram, para onde vão. Nós não somos assim”, afirma Djukurnã.
“Aculturadas são as pessoas que não sabem quem são, de onde vieram, para onde vão. Nós não somos assim” – Shirley Djukurnã
O antropólogo Messias Basques estuda a temática indígena desde 2009. Ele explica que o preconceito contra os indígenas, apesar de ser algo que envolve educação, está mais relacionado à nossa percepção sobre o espaço coletivo. Ele menciona, inclusive, exemplos de nações que, embora consideradas cultas, cometeram inúmeras atrocidades.
“A gente não respeita aquilo que desconhece. Isso é verdade. Mas ao mesmo tempo, um dos países mais cultos levou o mundo ao nazismo. Então não foi por falta de conhecimento que foi praticado o holocausto contra os judeus. Na verdade, se trata de algo que está para além do conhecimento – passa pelo conhecimento, mas vai além –, que é a ampliação da nossa percepção de que o espaço coletivo tem que ser, a todo momento, ampliado. Ou seja, não é uma questão apenas de ter o conhecimento formal sobre quem eles [índios] são, mas lembrar que a todo momento novas diferenças aparecem entre nós e demandam direitos, inclusive, o direito de existir. Não se trata de ter apenas um conhecimento que é transmitido pela sala de aula, mas de ter uma sensibilidade para a diferença, para a diversidade”, afirma o pesquisador.
“Não se trata de ter apenas um conhecimento que é transmitido pela sala de aula, mas de ter uma sensibilidade para a diferença, para a diversidade” – Messias Basques
E, como dá a entender Baiara, a ampliação dessa percepção passa pelo contato direto dos indígenas com a sociedade, principalmente com as pessoas mais novas. “Quem vai tomar conta de nosso país são nossos jovens, nossos alunos. E isso é uma mensagem que ele vai levar para o papai, para o colega, para a mamãe, para o tio… Vai expandindo esse diálogo com a família, esse olhar diferente para uma sociedade diferente”, finaliza.
Outros projetos que beneficiam comunidades indígenas
As atividades realizadas esta semana foram voltadas para temas específicos dos indígenas, como saúde, esportes e religiosidade. Mas além dessas ações pontuais, a UFJF-GV possui outros projetos, principalmente de extensão, que tratam da questão dos povos nativos da região. É o caso do Núcleo de Agroecologia de Governador Valadares (Nagô). Coordenada pelo professor do Instituto de Ciências da Vida (ICV), Reinaldo Duque Brasil Landulfo Teixeira, a iniciativa conta com uma equipe de pelo menos 19 pessoas, que se dedicam a trazer a cultura e saberes das comunidades tradicionais do Médio Rio Doce para a universidade, como o povo Krenak, por exemplo.
Ao longo de todo o ano, o Nagô realiza cursos de extensão, oficinas e intercâmbios agroecológicos, envolvendo professores, técnicos, estudantes, agricultores familiares, indígenas e quilombolas. É o caso do curso “História e Cultura dos Povos Indígenas de Minas Gerais”, que aconteceu em outubro do último ano.