Utilizar os conhecimentos gerados na universidade para um propósito maior: reconstruir a comunidade em que nasceu. Esse é o objetivo do engenheiro civil e pós-graduando em Planejamento, Gestão e Controles de Obras Civis pela Universidade Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), Jac-Ssone Alerte. Por meio de boas práticas sustentáveis, o haitiano tem como principal meta a reconstrução da infraestrutura do bairro de Don de l’amitié, localizado no distrito de Grand’Anse, no Haiti, que teve grande parte da infraestrutura comprometida pelos abalos do Furacão Matthew, que assolou o país em outubro de 2016.
Para tanto, Alerte idealizou o Vila Marie Celiane Alexis, um modelo de comunidade autossustentável que consiste em sistematizar a construção de casas populares, em regime de mutirão e utilizando tijolos ecológicos, para beneficiar 15 famílias pré-selecionadas. A motivação principal é envolver as populações vítimas de desastres em torno de uma proposta viável de reconstrução. “Uma casa não pode ser vista simplesmente como o levantar de quatro paredes, mas sim como a realização de um sonho unificado de uma comunidade”, afirma.
O engenheiro se articulou com lideranças locais e adquiriu um terreno, onde aplicará a técnica de tijolo solo-cimento para construir moradias seguras e resistentes a tremores e ventos fortes. Por meio do trabalho coletivo, Alerte pretende edificar uma nova comunidade com moradias de qualidade em uma área sem infraestrutura básica de água, esgoto e energia elétrica onde os moradores vivem em extrema vulnerabilidade e pobreza.
O haitiano esteve na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), participando do evento “Para além da catástrofe: reconstruir e reerguer”, organizado pelo Ramo Estudantil IEEE, da Faculdade de Engenharia, juntamente com o PET Civil, o Engenheiros sem Fronteiras – núcleo Juiz de Fora e o Grupo de Estudos em Grandes Obras de Infraestrutura (Netec). A iniciativa, que aconteceu entre os dias 9 e 10 de abril, buscou discutir sobre barragens, seus rejeitos e tecnologias humanitárias.
Em sua visita à UFJF, Alerte ainda se reuniu com a Diretora de Relações Internacionais, Bárbara Daibert, com o objetivo de fortalecer o diálogo com a Universidade e planejar o desenvolvimento de ações em conjunto. A proposta é valorizar a cooperação entre Brasil e Haiti a partir da integração de uma rede composta por diversas instituições de ensino.
O engenheiro, autor do livro “(Re)construindo um sonho”, bateu um papo com o Portal da UFJF e destacou: “quando você constrói uma casa, gera um sopro de esperança. Procuro inspirar pessoas não apenas levantando paredes, busco ir além. Acredito que de tijolo em tijolo, construímos sonhos”. Confira a entrevista:
UFJF: Um dos princípios de seu projeto é a sustentabilidade. Como construir de forma sustentável?
Alerte: Acredito que menos é mais. A cultura de “é melhor sobrar do que faltar” não é sustentável. Precisamos pensar um projeto com um bom planejamento utilizando, principalmente, produtos locais. Por exemplo, o tijolo solo-cimento, feito na própria comunidade, é ecológico. A extração do solo para matéria-prima não envolve máquinas e, consequentemente, emissão de gás carbônico. Para processá-lo, utilizamos uma prensa manual que, por sua vez, também não emite poluentes ou resíduos. No processo de produção não é necessário queimar para ganhar resistência, utilizamos apenas solo, cimento e água.
“Uma casa não pode ser vista simplesmente como o levantar de quatro paredes, mas sim como a realização de um sonho unificado de uma comunidade”
Outro motivo relevante é a economia. Com o uso do tijolo ecológico, compondo-se mutirões e grupos de trabalhos, os custos são reduzidos significativamente. Isso torna o projeto cada vez mais sustentável, porque gastamos menos para fazer mais. Utilizamos esses princípios em todas as etapas, desde a fundação, até o posicionamento estratégico de uma janela, para que haja ventilação cruzada na casa, por exemplo.
UFJF: Além de se guiar pelos princípios de sustentabilidade, o Vila Marie impacta diretamente uma comunidade que sofreu os impactos de um desastre natural como o Furacão Matthew, que assolou o Haiti em outubro de 2016. Na sua opinião, como usar a Engenharia para redução das desigualdades em comunidades vulneráveis?
Alerte: Costumo falar que precisamos, em primeiro lugar, usar a Engenharia social e, depois, a Civil. Porque um projeto pode ser bem estruturado tecnicamente, mas se não houver o fator social envolvido, você não consegue reduzir, de fato, as desigualdades. Estamos no século 21 com acesso à tecnologias de ponta, como a inteligência artificial e impressora 3D, mas não podemos perder a simplicidade dos produtos manuais, que dependem apenas da habilidade do ser humano. O engenheiro precisa olhar para o local em que o projeto vai ser inserido como um todo, trabalhando em conjunto com psicólogos e sociólogos. Porque quando as pessoas perdem suas casas e pertences, elas perdem muito mais que isso: perdem a esperança, objetos de valores sentimentais, suas referências e cultura. Construir uma moradia não é suficiente para diminuir essa dor. Precisamos, enquanto profissionais e humanos, conversar com as pessoas e conquistar a confiança das comunidades. Assim é possível engajar os parceiros, envolver moradores e diminuir as desigualdades de uma maneira muito mais eficaz.
UFJF: Recentemente o Brasil, mais especificamente Minas Gerais, sofreu com desastres que afetaram muitas famílias, como os rompimentos das barragens em Mariana e Brumadinho. Como seria possível aplicar as suas metodologias, pensadas para o Haiti, na nossa realidade?
Alerte: Em primeiro lugar, acredito que precisamos mobilizar quem está tomando as decisões, ou seja, os gestores. Eles precisam saber da existência de soluções diversificadas. Como, por exemplo, o mutirão e os tijolos ecológicos, que desenvolvo no meu projeto. Desta forma, é possível inserir as pessoas que foram desabrigadas na solução. Engajar a comunidade é importante porque seus membros querem participar. Durante o período da faculdade fiz uma pesquisa e verifiquei que 100% das famílias haitianas entrevistadas desejam compor o mutirão de reconstrução do bairro onde moram. Além disso, construir em regime de mutirão e com matérias-prima da localidade é muito mais econômico e sustentável a longo prazo.
Em Minas Gerais, mais especificamente, pode-se estudar se é possível retirar os rejeitos da lama e transformá-la em matéria-prima de tijolos ecológicos, por exemplo. Entretanto, para aplicar esse tipo de solução, é preciso mapear o espaço, dialogar com os moradores e estudar as possibilidades, se permitindo conhecer e implementar novas soluções.
UFJF: Como pensar essas comunidades para além das catástrofes que viveram?
Alerte: Todo o problema traz uma oportunidade com ele. Em casos de desastres naturais, como terremotos, mas também em crimes ambientais, como aconteceram em Minas Gerais, gera-se muito sofrimento e dor. Mas, ao mesmo tempo, traz ensinamentos para que os gestores planejem de forma mais eficaz. O que eu estou tentando fazer no meu país é basicamente isto. Planejar um espaço após um desastre de uma maneira diferente. Uma comunidade que sofreu com uma catástrofe não precisa apenas de comida, roupas ou remédios na hora, mas sim de um trabalho contínuo. Hoje buscamos isso com o Vila Marie. Começou com o reflorestamento, a mobilização da sociedade, muito estudo, e agora vamos iniciar a construção das moradias. Quando você constrói uma casa, gera um sopro de esperança. Procuro inspirar pessoas não apenas levantando paredes, busco ir além. Acredito que de tijolo em tijolo, construímos sonhos. É primordial desenvolver projetos a longo prazo para que essas comunidades não caiam no esquecimento.
“É papel fundamental da Universidade oferecer essa contribuição à sociedade. Por meio do envolvimento dos alunos, acredito que é possível mudar realidades”
UFJF: Qual a importância de aprimorar as políticas habitacionais em comunidades que sofrem com desastres naturais, mas também em locais próximos à barragens ou com incidência de enchentes e desabamentos?
Alerte: O Haiti tem duas placas tectônicas e há estudos geográficos que dizem onde não se deve construir. O problema é que não há fiscalização suficiente. Então, como melhorar isso? Com planejamento sistemático. E esse planejamento deve ser feito em conjunto com todas as partes interessadas para definir um plano de ação eficaz. Esse plano não deve ser pensado apenas por alguém que fica no escritório, mas sim em diálogo com habitantes da localidade. E, depois, é preciso monitorar e fiscalizar. Porque, infelizmente, teremos mais desastres naturais, já que é algo que não conseguimos evitar. Mas podemos nos preparar de maneira mais consolidada.
UFJF: Por que é necessário discutir esse assunto com estudantes que serão os futuros engenheiros, como aconteceu durante o evento “Para além da catástrofe: reconstruir e reerguer”?
Alerte: Inspirar, motivar e descobrir um propósito. Os alunos precisam despertar para problemas reais, que impactam as pessoas. O meu trabalho de conclusão de curso (TCC) virou extensão, uma empresa de impacto social, livro e estou reconstruindo a minha pequena comunidade. Ou seja, é um projeto real no qual me sinto envolvido. Conversar sobre isso com os estudantes é me colocar como um exemplo de motivação. Porque é papel fundamental da Universidade oferecer essa contribuição à sociedade. Por meio do envolvimento dos alunos, acredito que é possível mudar realidades.