“Para garantirmos segurança com cidadania, é necessário ouvir o outro.” Essa reflexão — feita pelo instrutor da Academia Nacional da Polícia Rodoviária Federal (ANPRF) em Juiz de Fora, Junie Penna — foi a motivação do primeiro acordo de cooperação técnica entre a ANPRF e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Firmada ainda em 2018, a parceria desenvolve uma pesquisa de âmbito nacional para traçar um panorama da realidade dos policiais rodoviários no país.
O professor da Faculdade de Direito, Vicente Riccio, é o coordenador do grupo multidisciplinar responsável pela pesquisa, composta também pelos professores Marcel Vieira, Augusto Souza e Lupércio Bessegato, do Departamento de Estatística, e pelo professor Eduardo Magrone, da Faculdade de Educação. Conforme Riccio, o trabalho deverá fornecer dados sobre fenômenos contemporâneos envolvendo as polícias no contexto brasileiro. Paralelamente à produção de artigos acadêmicos, essas informações servirão para orientar as estratégias da própria Academia Nacional da PRF, como explica o inspetor Fernando Ribeiro Secchi, instrutor da ANPRF em Florianópolis.
“A pesquisa busca captar a percepção do agente policial diante de vários fenômenos, alguns muito interessantes para a própria gestão da PRF, porque questionam o policial sobre seu grau de satisfação com a carreira, com suas atividades, suas prioridades. E também indaga sobre os pontos fortes e fracos da própria instituição, e quais caminhos ela deve seguir.”
Da mesma forma, pondera Secchi, os dados encontrados na pesquisa poderão auxiliar a PRF na gestão de seus recursos humanos. “Com essa pesquisa, nós iremos avaliar como nosso policial se sente diante da instituição. Perguntas envolvendo questões salariais, valorização profissional, situações de estresse durante o período de trabalho. Se nosso policial se depara com situações de medo durante sua atuação.”
“Nós vivemos em uma sociedade hipermidiatizada. As ações da polícia são filmadas e divulgadas, independente de sua autorização. De que forma isso impacta a ação das polícias? Como o policial percebe esse fenômeno durante sua atuação? São questões contemporâneas, que nós queremos entender no contexto brasileiro.”
Questionário voltado para os agentes
Para encontrar esses dados, a partir desse mês, serão distribuídos aleatoriamente questionários entre aproximadamente novecentos dos dez mil agentes da PRF espalhados pelo país. As questões abordadas, explica Riccio, envolvem cinco temas principais: relação polícia-sociedade; justiça procedimental, mídias e atividade policial; satisfação no trabalho; e avaliação do treinamento recebido na Academia Nacional.
Sobre o primeiro tema, o professor explica que o interesse acadêmico sobre as polícias começa a ganhar corpo nos Estados Unidos, em meados da década de 1960, especialmente no contexto do movimento dos direitos civis. Desse momento, surge um esforço para compreender as polícias, sua atuação, para propor novas políticas para as forças policiais.
“A Democracia se diferencia das outras formas de governo porque, nela, o poder do Estado é limitado pela lei. E nós precisamos de alguém que aplique essa Lei. Dessa forma, a polícia é essencial para qualquer estado democrático.” Observando a atuação da PRF sob esse contexto, Riccio aponta que uma ideia chave da parceria é o conceito de legitimidade. “Em uma sociedade democrática, o que deve orientar a relação entre polícia e sociedade é a legitimidade. Então, é um tema interessante tanto para a PRF quanto para a sociedade: de que modo o agente policial enxerga sua atuação, de que modo ele enxerga sua relação com a sociedade, como ele define quem é e quem não é suspeito…”
Quanto ao segundo questionamento da pesquisa, Riccio remonta aos eventos de Ferguson (EUA), em 2014, quando a morte de um jovem negro por um policial branco provocou uma série de protestos e reacendeu a discussão sobre violência policial nos Estados Unidos. “O presidente Obama chegou a criar uma comissão com policiais, acadêmicos e representantes da sociedade civil para discutir a ação policial no contexto de uma sociedade democrática. Disso, surgiu a discussão a respeito da necessidade do uso de câmeras por policiais.”
“Nós vivemos em uma sociedade hipermidiatizada. As ações da polícia são filmadas e divulgadas, independente de sua autorização. De que forma isso impacta a ação das polícias? Como o policial percebe esse fenômeno durante sua atuação? São questões contemporâneas, que nós queremos entender no contexto brasileiro.”
A última parte da pesquisa deverá trazer uma avaliação das ações da Academia Nacional da PRF. Criada em 2014, a ANPRF surgiu com a necessidade de centralizar as atividades de treinamento e capacitação dos policiais. “Desde 2005, nós temos a Matriz Curricular Nacional, que procura estabelecer os contornos necessários à formação do profissional de segurança. E ainda é um desafio implementar essa base curricular no país”, comenta Riccio.
Secchi complementa: “nós estamos em constante formação de policiais, seja na entrada de novos policiais na instituição, seja na atualização e na capacitação de servidores já atuantes, que são nosso grande público na Academia. Então, o processo de aprendizagem é contínuo, e esses dados podem nos auxiliar tanto em nossa grade curricular para a formação de novos agentes, quanto na recapacitação do público interno.”
O sistema viário brasileiro é complexo e conta com mais de um milhão e setecentos mil quilômetros de rodovias. Destes, 213.453 são pavimentados, e as rodovias federais correspondem a somente 65.615 quilômetros. A pesquisa deverá revelar as particularidades regionais encontradas na atuação da PRF. “Nós estamos muito curiosos sobre as respostas que vão surgir desse questionário”, continua Riccio. “Ao trabalhar todo o território nacional, vamos descobrir diferentes realidades, porque um policial atuando na Rodovia Dutra enfrenta desafios e demandas bastante diversas daquelas encontradas por um agente que trabalha em uma rodovia no Mato Grosso, perto da fronteira.”
“Essas demandas também variam conforme as áreas de atuação, dentro da PRF. Existem as áreas de policiamento ostensivo, mas também áreas especializadas: a divisão de operações aéreas (nossos colegas que trabalham com os helicópteros); grupos de operações com cães… Vários segmentos da nossa atuação, que podem trazer visões diferentes dessa realidade”, aponta o inspetor Secchi.
Tradicionalmente, as organizações policiais costumam ser mais fechadas aos observadores externos, como constata o professor. “Acessar essas organizações — Forças Armadas, polícias, sistema prisional — não é fácil, em nenhum lugar no mundo. Construir uma relação de confiança é um processo.” Dessa forma, além de sua abrangência e dimensão, a pesquisa desenvolvida na UFJF tem como particularidade a colaboração próxima com seu objeto de estudo.
“Essa parceria foi formalizada através de um acordo de cooperação técnica, com validade de um ano e renovável por até cinco anos. A intenção é que esse trabalho seja o primeiro passo de uma caminhada duradoura. Esse diagnóstico é extremamente útil para nosso planejamento estratégico”, complementa o inspetor Penna. “A PRF tem como missão a garantia da segurança, e nossa qualificadora é a cidadania. Então, nós precisamos ouvir os outros. Precisamos ter pesquisas como essa, de quem tem essa experiência e essa prerrogativa. Em uma sociedade cada vez mais complexa, esse diálogo com a Universidade e com os diversos setores da sociedade, para nós, é muito valioso”, conclui.