Dois processos referentes à comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais) devem ser apreciados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira, dia 12. Um deles, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), ajuizada, no ano de 2013, pelo Partido Popular Socialista (PPS), solicita que o STF declare negligência do Congresso Nacional sobre a temática. O argumento é de que o Legislativo Federal já deveria ter votado projeto de lei que criminaliza atos de homofobia (ódio e aversão a homossexuais).
O segundo processo, um mandado de injunção, impetrado pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT), pretende que o STF criminalize a homofobia e a transfobia – ódio e aversão a transexuais, igualando-as, juridicamente, ao crime de racismo.
Na avaliação da professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Joana de Souza Machado, os julgamentos desta semana são oportunidade para verificar “como o campo judicial brasileiro, por meio do seu órgão de cúpula, reconhece o ódio à população LGBT enquanto causa de tantas mortes e outras violências no país”.
Em outras palavras, segundo a pesquisadora, “é importante o olhar atento não apenas para o resultado final que o Tribunal produzirá nessa oportunidade, mas, especialmente, para as razões diretas e indiretas que os ministros, individual e coletivamente, irão articular, uma vez que todas poderão ser mobilizadas em outras situações decisórias”.
Joana acrescenta que, ao não impedir violências estruturais, o Estado contribui para tais práticas, tornando-se, politicamente, responsável por elas. “E não há dúvidas de que o Estado brasileiro, pela sua omissão histórica, é politicamente responsável pelas violências praticadas contra a população LGBT e de que precisamos romper com esse silêncio, essa violência, institucional.”
Criminalizar é o melhor caminho?
Os julgamentos desta semana podem favorecer duas relevantes reflexões. A criminalização é o melhor caminho de combate às violências? A via judicial é adequada para o processo de criminalização? “É preciso alertar que o nosso sistema penal é estruturado pelo patriarcado, pelo racismo e se revela heteronormativo. Não por outra razão, constitui projeto de encarceramento da população negra, especialmente da juventude negra; é violento com mulheres diversas, mulheres mães, periféricas, trans. Dessa forma, seria a criminalização, que traduz aposta inequívoca no encarceramento, a melhor alternativa para se combaterem violências que estruturam o próprio sistema penal?”, questiona.
“É preciso endurecer contra as diversas opressões à população LGBT, mas sem se deixar seduzir por caminhos precários, perigosos, explosivos e de fácil reversão. Que o resultado possa efetivamente contribuir para a luta por reconhecimento da população LGBT, para o avanço nessa pauta cara e urgente a qualquer agenda civilizatória de direitos humanos” – Joana Machado, professora
Joana pondera que, apesar de o racismo ser crime no país, pouco se vê condenação com base nessa tipificação penal específica. “Mas a população negra é alvo sistemático de condenações penais. Por outro lado, se tantas violências graves já foram criminalizadas, como as discriminações por razão religiosa, racial, de origem, dentre outras, como compreender e justificar o silêncio estatal sobre a discriminação em razão de orientação sexual e identidade de gênero?”
A professora adverte sobre os riscos da aposta na criminalização como melhor alternativa para o combate às discriminações. “É extremamente arriscado sob a perspectiva da segurança jurídica, do garantismo e da própria democracia. Sem falar que uma decisão judicial nesses termos poderia produzir efeitos práticos contrários aos pretendidos, uma reação dura do Congresso em sentido oposto (backlash) ou da própria sociedade. É preciso endurecer contra as diversas opressões à população LGBT, mas sem se deixar seduzir por caminhos precários, perigosos, explosivos e de fácil reversão. Que o resultado possa efetivamente contribuir para a luta por reconhecimento da população LGBT, para o avanço nessa pauta cara e urgente a qualquer agenda civilizatória de direitos humanos”.
A avaliação sobre a criminalização como última alternativa é compartilhada pelo professor da Faculdade de Educação da UFJF e integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed), Roney Polato de Castro. “Apesar de pensar que a criminalização e a punição jurídica a esses crimes é um recurso que deve ser o último, porque eu acredito muito mais na potência da educação e dos processos educativos, das mudanças culturais, apesar disso, em muitos casos, a criminalização da LGBTfobia é algo necessário. Eu vejo a possibilidade da equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo como algo que vai contribuir para desnaturalização dessas violências, que são cotidianas e sistemáticas contra pessoas LGBT.”
Movimento educativo
Polato ressalta que a LGBTfobia atinge especialmente lésbicas, gays, bissexuais e transexuais. Todavia, recorda que essas violências também já vitimaram heteroxessuais, quando da tentativa de escaparem das normas de gênero e sexualidade. “Já vimos alguns casos nas mídias de pais, pai e filho, mãe e filha, pessoas que por trocarem afeto foram ‘acusadas’ de homossexualidade e, portanto, sofreram algumas violências.”
“Pode ser uma decisão importante para a comunidade LGBT e para a sociedade em geral, se gerar também um movimento educativo, um movimento de discussão, de transformação cultural e, portanto, de legitimação desse debate sobre essas violências nas diferentes instâncias” – Roney Polato, professor
A expectativa do pesquisador é de que a criminalização da LGBTfobia possa gerar, também, um movimento educativo na sociedade brasileira. “Pode ser uma decisão importante para a comunidade LGBT e para a sociedade em geral, se gerar também um movimento educativo, um movimento de discussão, de transformação cultural e, portanto, de legitimação desse debate sobre essas violências nas diferentes instâncias. Talvez gere a necessidade de órgãos públicos, que ainda não se dispuseram a pensar sobre esses crimes, que eles comecem a pensar.”
Nesse sentido, um dos exemplos mencionados por Polato é o da Lei Maria da Penha, que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
“Embora tenhamos várias fragilidades no cumprimento dessa lei, em função de a nossa cultura ainda ser muito machista, sexista e violenta contra as mulheres, a lei, bem ou mal, gerou algumas discussões importantes. O debate é importante, o que reverberou em algumas políticas públicas. Eu espero que, para além da criminalização e da punição, que haja também um movimento de problematização social e cultural mesmo da LGBTfobia a partir da equiparação com o crime de racismo.”
Caráter reparativo
Já a doutoranda em Psicologia pela UFJF, Brune Coelho Brandão, acredita que a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo pode representar uma reparação do Estado à comunidade LGBT. A pesquisadora salienta que o Brasil é o país que mais mata essa comunidade. “A proposta de equiparar a LGBTfobia ao crime de racismo é um avanço no sentido enquanto uma política social. O ataque aos LGBT acontece de diversas formas, desde crimes de ódio até violências mais sutis, mais simbólicas, violências psicológicas, piadinhas, deboches, desvalorização de sua cultura, desvalorização dos modos de ser e se colocar no mundo. Percebemos que todas essas formas são violências, são agressões em vários níveis à integridade física, psicológica e moral dessas pessoas.”
“O ataque aos LGBT acontece de diversas formas, desde crimes de ódio até violências mais sutis, mais simbólicas, violências psicológicas, piadinhas, deboches, desvalorização de sua cultura, desvalorização dos modos de ser e se colocar no mundo” – Brune Coelho, doutoranda em Psicologia
Segundo Brune, a defesa da criminalização não está relacionada, exclusivamente, ao desejo de punição de quem discrimina. “A ideia, na verdade, é fazer com que o direito da pessoa LGBT seja respeitado, que o direito se faça valer, no sentido de que essas pessoas não gozam desses direitos. Os LGBT não têm essa liberdade e esse respeito que deveria vir socialmente dessa relação com o outro. A Justiça, dessa forma, entra como uma alternativa de garantir esse respeito de um modo institucional, para que essas violações não ocorram, porque é uma violação de direitos humanos. Pensar a violação enquanto violência e como ela opera nesses corpos e como retira toda a autonomia desses corpos e desautoriza esses corpos a existir.”
Uma decisão favorável do STF sobre as duas ações, na avaliação da pesquisadora, podem significar avanço. “No sentido de coibir certos crimes, evitar que aconteçam, de mostrar que de fato é uma questão séria. Não é um crime qualquer. São crimes que têm especificidades e a criminalização pode mostrar que, de fato, a Justiça brasileira não coaduna com essa perspectiva heteronormativa, lgbtfóbica, cisnormativa, que permeia a nossa sociedade. É no sentido de reparar esse dano individual à pessoa, de garantir que a pessoa possa ter um outro lugar de voz para recorrer em casos de violência e violação do seu corpo, da sua identidade, da expressão de sua sexualidade e de seu gênero.”
Militância LGBT
Para militantes LGBT consultados pelo Portal, a equiparação da LGBTfobia ao crime de racismo é fundamental e urgente para o país. “Na atual conjuntura é muito importante que a gente tenha a lgbtfobia equiparada ao crime de racismo, porque é mais um respaldo que teremos legalmente. São tantas as ameaças sofridas, intensificadas recentemente durante o período eleitoral. É super importante a aprovação. A criminalização é válida e tem que passar”, pontua o estudante do curso de Química da UFJF, Felipe Modesto.
“Na atual conjuntura é muito importante que a gente tenha a lgbtfobia equiparada ao crime de racismo, porque é mais um respaldo que teremos legalmente” – Felipe Modesto, estudante de Química
A avaliação é compartilhada pela militante Bruna Leonardo. Ela acrescenta que a medida poderá garantir à comunidade LGBT mais segurança na vida cotidiana. “Criminalizar a LGBTfobia é uma forma de resguardar o direito de nós LGBTs termos uma vida como todo cidadão. Poder andar na rua sem medo de ser agredido, humilhado, xingado, pelo simples fato de ser diferente. Poder andar na rua de mãos dadas com seu companheiro ou sua companheira ou abraçá-lo ou trocar um beijo sem ser ser intimidado, ameaçado ou até sofrer violência física. Coisa que todo mundo faz e que para nós LGBTIs não é permitido. Essa é a importância: resguardar os nossos direitos, resguardar o direito de ter família.”
Bruna destaca que a violência aos LGBTs inúmeras vezes tem início no âmbito familiar. “Muitos são expulsos de casa, são espancados dentro de casa, na escola, sofrem violência psicológica. É para garantir o direito a uma vida como a de todo cidadão. A sociedade precisa entender quer ser LGBT não é um desvio de caráter e somos cidadãos e cidadãs, pagamos impostos e temos direito a sermos diferentes, sim. As pessoas têm, no mínimo, que nos respeitar. Ninguém precisa aceitar, querer levar a gente para casa, mas o respeito é fundamental.”
A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) rejeita quaisquer tipos de discriminação e defende o respeito às diversidades de gênero e sexual. No âmbito da instituição, a Diretoria de Ações Afirmativas e a Ouvidoria Especializada são órgãos de apoio e acolhimento da comunidade LGBT.
Outras informações: (32) 2102-3970 – Diretoria de Imagem Institucional