Se cuidar de transtornos mentais em uma situação de estabilidade já é um desafio, imagine alguém que enfrente esses problemas vivendo na rua, sozinha e sem uma rede de apoio. Foi desse cenário complexo que tratou a palestra “Na beirada da tábua da beirada: população em situação de rua e saúde mental”, ministrada pelo médico psiquiatra Uriel Heckert. O evento encerrou a 12ª Jornada Acadêmica de Saúde Mental, que começou no Centro de Ciências da Saúde desde a última quarta, 3.
Entre os motivos que levam as pessoas às ruas estão desemprego, falta de recursos e oportunidades, crise familiar e mesmo uma maior liberdade. “A rua não é só mazela, ela oferece também algumas oportunidades e algumas pessoas se acomodam nisso”. Uriel também comentou o uso de drogas nesses grupos, colocando o álcool e o crack como as principais substâncias, que funcionam com um efeito sedativo, muitas vezes ajudando a lidar com as intempéries da situação, como dias quentes ou frios e fome.
Com todas essas peculiaridades, é possível perceber a dificuldade de se tratar um tema complexo como saúde mental de uma população também tão complexa. A situação é bem ilustrada pelo título da palestra. A tábua da beirada é um ponto de vulnerabilidade, a um passo da queda. É onde situam-se os moradores de rua. Mas aqueles moradores de rua que vivem com problemas de saúde mental, estão ainda mais vulneráveis, “é a beirada da tábua da beirada”, como coloca o pesquisador.
Adoecimento mental da população de rua
Esquizofrenias, transtornos delirantes, psicoses induzidas por drogas e psicoses enxertadas foram detectados em pessoas em situação de rua, assim como casos de agressão, crimes gerados pelo preconceito e que muitas vezes não chegam a ser investigados por acontecerem com populações vulneráveis. Dentre os moradores de rua, aproximadamente 10% são psicóticos. Pessoas que levam uma vida solitária, desamparada, com baixa condição higiênica e, também por isso, ficam sem tratamento, uma vez que serviços de saúde ainda os negligenciam, conforme o palestrante.
Entre 30 e 35% das pessoas em situação de rua apresentam também transtornos depressivos recorrentes, com casos de distimias, transtornos de bipolaridade de humor e comorbidades, que são transtornos de personalidade e de conduta atrelados. Tentando completar as lacunas entre doentes e tratamento, enquanto desenvolvia sua pesquisa, Heckert executou um projeto piloto de saúde mental para a população de rua, o ProRua, na Faculdade de Medicina.
A proposta era centralizar ações de assistência específicas e as articular com pronto-socorros e unidades de saúde, assim como realizar possíveis internações. “Esses casos envolvem uma população especial e que demandam uma disposição especial”, reflete. “Não podemos esperar que eles se adaptem aos nossos serviços com todas nossas exigências e formalidades. Merecem um esquema especial de abordagem para serem incluídos no sistema como cidadãos, de fato.” O pesquisador conclui dizendo que deve-se estar atento às diferenças, para que seja possível superá-las, e que tem grande esperança na contribuição das futuras gerações e futuros profissionais da saúde.
Origens da vida na rua
Uriel Heckert citou alguns aspectos atuais das populações nessa situação, cujos números quadruplicaram nos últimos 30 anos. Apontou causas como o impacto da urbanização, que, nas últimas quatro décadas, fez com que grandes massas populacionais saíssem do campo e fossem tentar a vida na cidade, muitas vezes, porém, sem encontrar oportunidades ou conseguir se adaptar à nova dinâmica.
Além disso, fatores como desentendimentos familiares, declínio de crenças tradicionais, agravamento da desigualdade social e competitividade no mercado de trabalho somam para contribuir com esse cenário. “As pessoas vêm da zona rural, com instrução precária, sem condições de se atualizar e encontrar melhor qualificação, acabam ficando à margem na sociedade. Uma opção é a vida na rua.”
Uriel distingue, entretanto, diferentes situações de rua. Existem aquelas pessoas que ficam cotidianamente na rua por diferentes motivos, como trabalho ou mesmo locomoção; pessoas que estão na rua, numa situação temporária por terem se desentendido com familiares ou fugido de casa; e pessoas que, de fato, vivem na rua. “Aí são aquelas pessoas habituadas a essa realidade, que já incorporaram uma cultura e um estilo de vida da rua”. Completa afirmando que “morador de rua não é desocupado, a maioria deles trabalha”, seja no mercado informal, coletando materiais recicláveis, através de benefícios sociais ou ainda a mendicância.
Saúde psíquica
A 12ª Jornada Acadêmica de Saúde Mental foi organizada pela Liga Acadêmica de Saúde Mental (Lasmental), composta por estudantes de Medicina, Psicologia, Enfermagem e Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A iniciativa foi tomada para promover o debate sobre saúde psíquica em diferentes parcelas da sociedade. Além das palestras, a programação contou com apresentação de trabalhos.