O mineiro Farnese de Andrade ganhou notoriedade nas artes visuais brasileiras nos anos 1960, ao criar objetos e assemblages com peças corroídas pelo mar, garimpadas, usualmente, na praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. No entanto, outra faceta do artista, menos explorada pela crítica especializada, ganha espaço no Museu de Arte Murilo Mendes (Mamm) com a exposição “Farnese: Pintura. Gravura. Objeto”, em cartaz até setembro.
A mostra, com entrada franca, reúne 12 trabalhos do artista, sendo dez pinturas, uma gravura e um objeto. Tanto na confecção de gravuras quanto na elaboração de assemblages, Farnese era conhecido pelo processo lento e meditativo. Sua pintura parece ser um ponto de inflexão em relação aos outros dois, sendo de realização mais imediata, mas nem por isso menos inteligente.
Nas pinturas, figuras femininas, nuas ou seminuas, sedutoras e enigmáticas, encaram o espectador. A riqueza na padronagem, que aparece nos cenários e adornos usados pelas mulheres, é outra marca registrada do pintor.
Chamada pelo próprio artista de “tinta transformada”, a técnica usada por Farnese para produção de suas obras passava por três etapas. Na primeira, desenhava-se a figura em nanquim preto no papel; em um segundo momento, no verso do suporte, aplicava-se tinta aquarela misturada com um elemento químico que provocava a migração da tinta para a parte da frente, produzindo efeitos e manchas; ao final, camadas de cera impermeabilizavam o desenho.
Como explica o texto de apresentação da mostra, cuja curadoria é assinada por Paulo Alvarez, “essa produção pictórica foi uma constante no processo de Farnese de Andrade durante toda sua vida artística. Talvez a razão principal, como ele mesmo sugeria, seria funcionar como um descanso mental, de maneira que o gesto pudesse fluir em liberdade quase automática, deixando que as mãos guiassem a criação enquanto a mente buscava uma pausa.”
Nas vitrines que acompanham as obras, catálogos, comentários críticos e outros elementos aprofundam a perspectiva do visitante sobre o autor. Entre eles, imagens de uma exposição do artista em Juiz de Fora, de 1979, na antiga Capela Galeria de Arte. A maioria dos trabalhos expostos no Mamm, emprestados por colecionadores, estava presente na ocasião.
Além disso, a mostra também conta a história da capa do livro de memórias de Murilo Mendes, “Idade do Serrote”, cuja primeira edição estampava uma das bonecas de Farnese. A escolha do objeto para publicação foi do editor Rubem Braga, que julgou apropriado o tema do inconsciente no trabalho de Farnese com a pecha de surrealista que o escritor juiz-forano carregava.
Tanto Farnese quanto Murilo Mendes não ficaram satisfeitos com o resultado. Farnese julgava ter outro objeto mais em sintonia com o livro, e Murilo, por sua vez, não ficou satisfeito com a qualidade da impressão e tinha outras preferências estéticas, embora não tenha reclamado do trabalho do amigo editor.
Mas, neste sentido, o trabalho de Farnese de Andrade e a prosa-poética de Murilo Mendes guardam outra relação. Se há, na sondagem autobiográfica de “Idade do Serrote”, algo daquela busca nostálgica pelo “Paraíso Perdido” da vida e do espírito, a noção de um Éden ao qual o homem jamais retornará, o trabalho de Farnese de Andrade é uma reflexão constante sobre o tempo, a vida e a morte.
As bonecas, santos, caixas e oratórios de Farnese chamam atenção pela pesada carga que transmitem: objetos deteriorados pela maresia, conservados em transparentes invólucros de poliéster, levantam sempre a terrível pergunta: o que resta desta vida? no que ela consiste? Evadir-se da questão, fechando-se no imediatismo dos prazeres e dos objetos utilitários do cotidiano, é uma forma de tentar calar essa voz que interroga e avisa sobre a visita da “indesejada das gentes”, como diria Manuel Bandeira.
O trabalho de Farnese de Andrade convida o espectador a uma longa meditação, e quem declina do convite, pode terminar como um de seus bonecos, trancado na caixa da existência, despedaçado e sem resposta.
O artista
Farnese de Andrade Neto nasceu em Araguari, município do Triângulo Mineiro, em 26 de janeiro de 1926. As experiências familiares, incluindo a perda de dois irmãos e a morte da mãe, além da relação conflituosa com o pai, marcarão para sempre seu trabalho.
Estudou desenho com Alberto da Veiga Guignard, na Escola do Parque, em Belo Horizonte, entre 1945 e 1948. Após esse período de formação, logo se muda para o Rio de Janeiro para tratar-se de tuberculose e fixa residência. Durante anos trabalhou
como ilustrador de importantes periódicos, incluindo o jornal Correio da Manhã e as revistas O Cruzeiro e Manchete. No Rio, frequenta o Atelier de Gravura do Museu de Arte Moderna, sob a orientação de Johnny Friedlaender.
Seus trabalhos com objetos começam em 1964. Nos anos 1970, muda-se para Barcelona graças a um prêmio obtido no Salão Nacional de Arte Moderna, permanecendo na cidade espanhola durante cinco anos. Em 1975 volta ao Brasil e dá continuidade ao seu trabalho, participando de várias mostras coletivas e individuais pelo país.
Reconhecida internacionalmente, sua obra figura em importantes museus e galerias do mundo, como o Museu de Arte Moderna de Nova York, a Coleção de Arte Latino-Americana da Universidade de Essex (Inglaterra), o Instituto de Arte Contemporânea de Londres, o Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e o Museu de Arte Contemporânea de Niterói.
O Mamm fica localizado à Rua Benjamin Constant, 790, no Centro, em Juiz de Fora. A visitação acontece de terça a sexta-feira, das 9h às 18h, e aos finais de semana e feriados, das 12h às 18h, sempre com entrada franca.
Outras informações
3229-9070 (Mamm)
2102 – 3964 (Pró-reitoria de Cultura)