Dando sequência à série especial “Mulheres na UFJF” – em comemoração ao Dia Internacional da Mulher -, a reportagem de hoje aborda a trajetória de duas que chegaram ao topo da hierarquia de poder nos 57 anos de existência da instituição: as professoras Maria Margarida Martins Salomão, reitora por dois mandatos consecutivos de 1998 a 2006, e hoje deputada federal no segundo mandato; e Girlene Alves da Silva, atual vice-reitora.
Margarida é juiz-forana, realizou pós-doutorado e doutorado em Linguística na Universidade da Califórnia (EUA). Girlene é pós-doutora em Medicina Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo com estágio doutoral no Laboratoire de Psycologie Sociale da École des Hautes Études en Sciences Sociales em Paris (França). Ambas, de gerações diferentes e com trajetórias e formações também distintas, têm em comum, além do exercício da gestão na UFJF, a defesa do ensino público e de excelência.
Participação feminina na UFJF
Margarida Salomão, professora emérita da UFJF, soma em seu currículo 40 anos de dedicação à docência na instituição. O ingresso na Universidade deu-se em 1968, como aluna da primeira turma da Licenciatura em Letras. Ela recorda que, à época, a concepção do papel da mulher era de subalternidade e havia um grande domínio masculino na Universidade.
“Entrei na Universidade em um ambiente de profundo retrocesso: era o agravamento do Golpe de 1964. No que diz respeito à questão de gênero, as licenciaturas e, particularmente quem entrava na Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile), entrava em cursos de ‘espera marido’ assim denominados. Eram cursos considerados desimportantes e praticamente não tinha alunos homens. Havia pouquíssimas mulheres estudando Medicina e Direito. Engenharias então era uma raridade! Havia apenas a Faculdade de Filosofia e Letras (Fafile) para o convívio feminino, e as licenciaturas eram áreas consideradas desimportantes. Nesse aspecto, nós vivemos um processo de mudança imensa porque, desde então, inclusive por força do florescimento já na década de 1970 dos primeiros cursos de mestrado e doutorado, começa a haver uma espécie de enobrecimento acadêmico dessas áreas.”
A piauiense Girlene Silva é natural do município Canto do Buriti, localizado a, aproximadamente, cinco horas da capital Teresina, e este ano completa duas décadas de dedicação ao ensino, à pesquisa e à extensão na UFJF. A vice-reitora cursou a graduação em Enfermagem na Universidade Federal do Piauí (UFPI), entre 1987 e 1992.
“As pessoas ingressavam como docente, como eu mesma ingressei, para fazer mestrado depois. Tudo era uma grande improvisação” Margarida Salomão
“Eu sou de uma cidade muito pequena. Então, minha história como cidadã tem um processo migratório muito grande no Estado no qual nasci e fora dele também. Sou uma egressa da escola pública. Foi em Eliseu Martins, no interior do Piauí, que eu entrei na escola com 5 anos de idade e fiquei até a sexta série do primeiro grau. Em outro município, Floriano, que é de porte médio, na Escola Técnica da Universidade Federal do Piauí, concluí o Curso Técnico em Enfermagem, antigo segundo grau. A partir desse momento, eu tive a convicção de que eu queria ser enfermeira. Fui para Teresina, a 480 quilômetros de Floriano. No final dos anos 1980, não tinha, no interior do Estado, instituição de ensino superior. Na minha área, a UFPI ofertava 24 vagas por ano no curso que eu queria fazer. Eu me formei, em 1992, quando a Lei Orgânica da Saúde (SUS) só tinha dois anos. Eu participei ativamente, como estudante da graduação em Enfermagem, dos movimentos que defenderam a elaboração dessa política pública como um direito do cidadão e um dever do Estado. Até então, o acesso aos serviços de saúde era ainda menos equânime. Isso de alguma forma me mobilizou muito para querer entender que país era esse que não cuidava da saúde e da educação de sua população.”
O ingresso como docente
Margarida tornou-se professora da UFJF pouco após concluir a graduação, em 1972. “As pessoas ingressavam como docente, como eu mesma ingressei, para fazer mestrado depois. Tudo era uma grande improvisação. Alguns professores, na minha área inclusive, não tinham nem diploma universitário. É preciso saber disso, para que possamos saber de onde a gente veio. Nós não somos uma UFRJ, não somos uma UFMG. Nós somos uma universidade que teve que lidar com a origem de um grau de esclarecimento da sua elite, que lutou para que aqui houvesse uma universidade. Era uma cidade provinciana, em que você não tinha uma concentração acadêmica internacionalizada, como você tinha em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte. Então, este é um ponto importante.”
Ela destaca que o contexto conservador e retrógrado não foi impedimento para que muitas alunas e professoras da UFJF participassem ativamente de atividades políticas pró-democratização, buscando ampliar o espaço da inserção feminina. “É preciso registrar que muitas alunas da Universidade participaram ativamente de atividades políticas, no sentido de muitas terem sido, inclusive, presas, várias ex-professoras e ex-alunas que participaram ativamente. Mulheres, embora nós fôssemos poucas, havia aquelas que estavam muito ativas na luta política, como as professoras Marilda Vilela e Helena Motta Sales, entre outras.”
Girlene ingressou como docente na UFJF em 1997. À época, cursava o mestrado em Enfermagem na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Após a graduação, fui para o Rio de Janeiro para fazer mestrado na UFRJ, e foi do Rio que eu vim para cá. Depois, eu fui para São Paulo e fiz doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Se você observar, eu tenho uma trajetória toda de escola pública: municipal, estadual e federal. Essa é a minha trajetória: dentro dessas instituições de formação. Isso contribuiu muito para minha opção em seguir a carreira docente. Assim, quando eu me indagava sobre qual trabalho, em qual espaço eu queria ser uma trabalhadora, desde muito cedo, eu falava o seguinte: eu quero ser uma servidora pública.”
“Quando eu me indagava sobre qual trabalho, em qual espaço eu queria ser uma trabalhadora, desde muito cedo, eu falava o seguinte: eu quero ser uma servidora pública” Girlene Alves da Silva
O percurso até a gestão
Margarida salienta que foi o movimento sindical docente do final dos anos de 1970 que a projetou dentro da Universidade. “Havia um número grande de mulheres recrutadas, uma participação muito ativa de mulheres docentes. Não fosse isso, como você imaginaria que uma professora de Letras chegaria à Reitoria? Foram as grandes assembleias de greve da década de 1980 que nos levaram a esse grau de proeminência ao ponto de nós inventarmos a eleição direta para Reitoria, no Brasil, em 1984.”
No mesmo ano, ela foi a vencedora da primeira consulta pública democrática feita à comunidade acadêmica da UFJF. Entretanto, o resultado não foi efetivado. “Nós fizemos a eleição direta, cujo resultado foi desrespeitado, mas é uma eleição em que eu fui eleita reitora. Isso é uma coisa interessante, porque foi a primeira eleição direta e eu, que sou mulher, fui eleita reitora. Isso só é imaginável nesse contexto da redemocratização. Àquela altura a democracia estava em ascensão. A década de 80, embora economicamente seja perdida para o Brasil, do ponto de vista da construção democrática, é riquíssima na história do país, não só do século XX.”
Os frutos das reivindicações pela construção democrática da Universidade e do país embasaram os caminhos das gerações posteriores, que permaneceram na militância. Girlene filiou-se à Associação dos Professores do Ensino Superior de Juiz de Fora (Apes-JF) em 1997, sendo, inclusive, diretora da associação no biênio 1998-2000. A militância a colocou em contato com os desafios que a educação pública enfrentava no país. A participação em cargos de gestão na UFJF deu-se pela primeira vez, em 2010, por meio de consulta pública e democrática para a Direção da Faculdade de Enfermagem.
“Eu digo com muita tranquilidade: a facilidade de dirigir aquela unidade já partiu da campanha. Não foi um projeto da Girlene e da Denise Friedrich (atual diretora). Foi uma proposta para aquela unidade acadêmica, construída pelo coletivo da Faculdade de Enfermagem. Então, os professores, os técnicos e os alunos se reuniram. Nós elaboramos o que queríamos para aquela unidade nos próximos quatro anos e, a partir daí, escolhemos as pessoas que poderiam colocar essa proposta efetivamente na prática numa perspectiva democrática. Então, nossos nomes surgiram nesse contexto. Não eram desejos pessoais. Tinha toda uma conjuntura. A faculdade vivia uma crise muito grande. Uma crise institucional marcada pela falta de democracia. Vivíamos um momento de tensionamento. Uma de nossas unidades de formação havia encerrado as suas atividades à revelia do nosso desejo e isso acirrou um debate muito intenso dentro da faculdade. E, naquele momento, tínhamos a certeza: nós não iríamos abrir mão de algo que para nós era muito caro: a discussão democrática da Enfermagem. A partir daí, nos reunimos, 43 professores, com todas as diferenças, mas pensando um projeto para uma unidade acadêmica. Isso é muito importante!”
O desafio é chegar à gestão
Quando indagada sobre os desafios dos tempos nos quais ocupou a Reitoria da UFJF, entre 1998 e 2006, Margarida é enfática: “O problema é chegar! Para ser reitora, eu me candidatei em 1984, ganhei a eleição e a nossa lista nunca foi encaminhada ao Ministério da Educação. Aí, eu disputei outra vez em 1989, fui para o segundo turno e fiquei em uma pequena distância do professor José Passini, da Letras, que também foi reitor. O Renê Matos veio a ser reitor, com o Carlos Crivellari de vice, e, então, eu fui reitora, na terceira vez. Então, nada é simples. Numa situação de equiparação, é muito mais fácil uma mulher ser interrompida por um homem quando fala. Entre os reitores, nós éramos minoria, mas muito ativas, Ana Lúcia Gazolla (UFMG), Wrana Panizzi (UFRGS), essas mulheres eram reitoras naquela época, várias delas foram presidentes da Andifes, eu fui dirigente da Andifes.”
Margarida acrescenta que, no quadro geral, a participação de mulheres nas disputas pela Reitoria da UFJF, assim como nas demais instituições públicas de ensino superior, ainda é pequena. “Poucas mulheres chegaram a ser reitoras no Brasil, comparativamente ao número de homens. Você não tem um grande número de mulheres na história da UFJF disputando para ser reitoras. São pouquíssimas as mulheres que disputaram a reitoria nessa Universidade, que tem nos dias atuais um ambiente muito mais feminino, mas ainda assim é mais difícil deslocar os homens das posições de direção e isso porque você tem na verdade não o machismo institucionalizado. Não se trata disso! Aliás, o grave do machismo é ele não ser institucionalizado, ele é arqueológico. Ele está nas camadas mais subjacentes da prática.”
A avaliação é compartilhada por Girlene: “A UFJF tem mulheres ocupando cargos estratégicos e isso é uma conquista. Eu não tenho dúvida: o machismo existe, o preconceito existe e dentro da instituição pública existe, sim. Eu acho que, no espaço da academia, às vezes o machismo é velado, mas às vezes o véu cai. Certamente, para algumas pessoas ainda incomoda o fato de as mulheres ocuparem alguns cargos. Eu sou muito otimista. Acho que as pessoas hoje falam mais, se expressam mais. É nosso ativismo, a nossa militância que tem trincado essas paredes. Por que não? Eu continuo trabalhando. Quando me candidatei à vice-reitoria da UFJF pela primeira vez em 2014, perdemos as eleições, mas contribuímos de uma maneira mais democrática para uma discussão sobre a Universidade. A consolidação desses debates permitiu o êxito da nossa proposta, quando fomos eleitos, eu e Marcus David, em 2015.”
O deslocamento para o espaço público
No seu trabalho como deputada federal, Margarida ressalta a predominância de homens: “A bancada nossa é de homens que têm discursos feministas ativos, corajosos, explícitos, mas se tiver que tirar uma comissão, ela será só de homens. A questão é que se vê a mulher nessas posições como alguma coisa fora do lugar. E a mulher sempre procura se legitimar por aquilo que a sociedade espera dela. Então, ela é a mãe, ela toma conta da família, ela toma conta da casa, e também é professora, também é política, mas isso é uma espécie de sobremesa. Isso só para as mais obstinadas, porque, de fato, você não se legitima por aí. Diferentemente do homem que, se você encontrá-lo, ele vai falar qual é o trabalho dele. As mulheres se deslocaram da casa para o trabalho no século XX. Agora, espero que, no século XXI, elas se desloquem para o ambiente público e que haja, de fato, mais igualdade entre as pessoas. É muito curioso estar numa roda em que as pessoas não te conhecem e alguém pergunta para a mulher se ela tem filhos. E é muito mais raro você chegar num homem e perguntar se ele tem filhos. Porque é uma expectativa. É com essas expectativas que você tem que lidar. Você não fará mudança para valer se essas expectativas não forem enfrentadas”.
Na avaliação de Girlene, em 2016, as vozes femininas conseguiram ecoar com mais força em virtude da militância. “O ano de 2016 foi conjunturalmente muito importante no Brasil. Politicamente foi um ano que mexeu muito com a expectativa e com a esperança do povo brasileiro. E eu, como mulher, como servidora pública, me senti muito atingida. E 2017 continua muito difícil, mas observo que 2016 foi também muito importante para nós mulheres. Nas manifestações no Brasil, os coletivos ocuparam papéis importantes. A voz das mulheres ecoou com muita força em 2016. Eu percebi isso. Não é a história ‘eu tô te dando espaço’, esse espaço é nosso. Acredito que em 2017 avançaremos mais. Temos desafios imensos pela frente. O grande tema da diversidade não é secundário. É algo que faz parte do nosso cotidiano. E nós, mulheres, precisamos fazer essa discussão. Sinto-me muito tranquila e responsável que a Universidade precisa fortalecer esses debates e trabalhá-los para repudiar qualquer tipo de violência contra as mulheres. É muito desagradável, a cada página que você abre, ler casos de violência contra a mulher, violência contra grupos que, para alguns, continuam à margem da sociedade. Esse é o nosso desafio, como vice-reitora desta instituição, penso que a UFJF precisa aglutinar essas forças para uma sociedade mais justa, dar publicidade ao papel da mulher, enfrentarmos juntos a questão da violência, construirmos uma boa agenda não só para o mês de março, pensarmos a Universidade na sua plenitude e pluralidade para não cairmos em extremo. Esse é o nosso grande desafio.”