“Finalmente, sensacional inauguração”, anunciava o jornal Diário Mercantil, convidando o público para as primeiras sessões do Cine São Luiz. Naquele dia, os primeiros espectadores convergiram até a Praça da Estação — todos vestindo seus trajes de passeio, como instruía o convite –, para assistir ao marcante Rebelião no Presídio. O luxuoso prédio do Cine permanece de pé ali, agora ocupado por lojas, às vistas dos transeuntes apressados, que passam por ele num ritmo bem diferente daquele distante 15 de julho. Era 1955, uma época em que o rolezinho se chamava flânerie, e Juiz de Fora era uma outra cidade. Os aparelhos de TV, uma novidade ainda pouco acessível, não tinham grande qualidade de imagem ou som. É fácil entender como o filme se tornava protagonista dos eventos na cidade.
O namoro entre Juiz de Fora e a Sétima Arte já vinha de longa data: desde 1898, quando foi realizada aqui a primeira projeção, utilizando um aparelho Lumière, na mesma época em que o Rio de Janeiro, então capital da República, tinha seu próprio batismo no cinema. Desde então, os cinemas de rua se tornaram uma parte fundamental dessa dinâmica urbana, contando com mais de 20 salas de exibição espalhadas pela cidade.
A professora da Faculdade de Comunicação da UFJF (Facom), Christina Musse, coordena o projeto “Cidade e memória: a construção do imaginário urbano pela narrativa audiovisual”, no qual busca mapear as relações sociais que orbitavam os cinemas juizforanos. A partir de entrevistas e de acervos da época, essa pesquisa resgata o modo como a vida das pessoas se envolvia com as salas de exibição e de que forma o ritual de assistir a um filme ocupava o imaginário urbano.
“Era uma outra cidade, dedicada a outros fins além do comercial. O filme era visto com uma atenção que o tornava quase sagrado. E o ritual começava antes dele, quando as pessoas se arrumavam e caminhavam sem pressa até o cinema. Esse passeio pelas ruas era parte do evento, que terminava muito depois da sessão, da qual se saía num estado quase catatônico. O filme era mais protagonista, e o cinema, fio condutor das relações sociais”, define Christina.
Apesar de democráticas, as salas de exibição não escapavam de reproduzir algumas das discriminações de sua época. Implicitamente, seu público era determinado pelas rotas de passeio de cada classe social. As pessoas de classe média e alta faziam seu footing na Zona Sul da cidade e nos arredores da Rua Halfeld até o cruzamento com a Rua Batista de Oliveira. O Cine-Theatro Central, o Palace e o Excelsior eram os pontos de encontro desse grupo. Já a Avenida Getúlio Vargas e a parte baixa da Halfeld, bem como o Cine Popular e os cinemas de bairro, eram rotas de passeio de moradores da periferia, negros, trabalhadores domésticos e das fábricas. Com o tempo, essa separação foi se esvaindo, mas deixou algumas heranças na identidade dos cinemas.
Um cinema para chamar de seu
Segundo Christina, cada sala de exibição tinha particularidades que compunham suas identidades, como uma programação voltada para determinado público e os temas sonoros, músicas que abriam as sessões de cinema, antecedendo o filme. E, mesmo que a maioria das salas fosse ocupada por filmes hollywoodianos, havia alguns espaços onde filmes de menor repercussão encontravam seu lugar. “Algumas salas exibiam uma cinematografia alternativa, europeus e nacionais, como o Cinema Festival e, mais tarde, o Cinema Paraíso. Antes e em torno deles, gravitou o movimento cineclubista de Juiz de Fora, que se organizara no Centro de Estudos Cinematográficos (CEC), e culminou numa geração que veio a trabalhar com crítica e produção de cinema”, apontou Christina.
Membro do mesmo grupo de pesquisa, a estudante Valéria Fabri vem produzindo uma webserie que narra as histórias das salas e suas peculiaridades. Em função do contato com antigos espectadores, ela percebeu o efeito que essas memórias ainda exercem nas pessoas que compartilhavam esses espaços. “Um dos entrevistados contou que costumava assistir à série do Zorro, no Cine Glória, e, depois das sessões, se encontrava com outros espectadores para trocar gibis em frente ao cinema. Recentemente, ele nos enviou todos os arquivos dessa série, já digitalizada. Cinema de rua é um tema que mobiliza as pessoas a contar suas histórias, desperta uma memória afetiva”, afirma.
De espectadores e cineastas
Dedicada a mapear o histórico da atividade cinematográfica em Minas Gerais, a professora do Instituto de Artes e Design da UFJF (IAD), Alessandra Brum, coordena o projeto “Minas é Cinema”, destacando o legado da produção audiovisual do estado, normalmente inexplorado, em benefício das produções dos grandes centros. Ainda em sua primeira fase, que consiste no levantamento de publicações locais sobre cinema, a pesquisa já aponta a riqueza da atividade na região. “Com a presença do cineasta José Sette, por exemplo, Juiz de Fora passou por um movimento forte e recente de produção cinematográfica, que acabou revelando novos cineastas, como o próprio Marcos Pimentel, marcados por um estilo próprio e uma preocupação estética em suas obras, que dialoga com as artes plásticas”, avaliou Alessandra.
Um dos expoentes desse grupo, Pimentel passou de espectador a cineasta premiado internacionalmente, por filmes como o Sopro (2013) e A poeira e o vento (2011), parte de uma extensa filmografia de documentários. Sua vocação, ele conta, foi descoberta na sala 2 do Cine Palace, onde eram exibidas as películas em 35mm. “Estava muito perdido a respeito de que rumo tomar profissionalmente”, relembra. “Isso foi depois da reforma do Palace, quando eles passaram a incluir filmes alternativos em sua programação. Eu me lembro de assistir a uma mostra de curtas brasileiros (que vinham dos anos 40 até os anos 90) e pensar que era possível fazer outro tipo de cinema, com outra linguagem. E percebi que era isso o que eu queria fazer.”
O conflito: precarização versus resistência
Quase 30 anos após sua badalada estreia – prestigiada por autoridades e membros da alta sociedade juiz-forana -, o Cine São Luiz viu sua bilheteria minguar. Com os anos 1980 veio o conforto das fitas VHS e da TV a cabo, acompanhadas da mudança na forma de ocupação da cidade e do consumo, mais rápido e segmentado. Ao mesmo tempo, a simbiose entre as grandes redes de cinema e os shopping centers começava a tomar o mercado.
Com o público reduzido e com um perfil completamente diferente daquele inicial, restou ao Cine mudar sua programação. Dos sucessos hollywoodianos, ele passou a exibir sessões de filmes pornográficos, nas quais os espectadores eram frequentemente importunados (ou agraciados) por propostas duvidosas de seus vizinhos de poltrona. Já conhecido como “o cinema pornô da cidade”, o São Luiz resistiu até 2007, quando finalmente fechou suas portas. A maior parte das salas de exibição de rua em Juiz de Fora seguiram a mesma trajetória, talvez de forma menos expressiva, e gradativamente foram encerrando suas atividades.
“Hoje, Juiz de Fora mantém a duras penas seus cinemas de rua, sendo o Cine Palace talvez o mais importante. Ele resiste, enfrentando diversos problemas estruturais e essa precarização histórica, da qual a maior parte das salas não se recuperou. Essa resistência é importante, seja para manter na rua os últimos cinemas, seja para oferecer atividades alternativas de ocupação do espaço público com as exibições. Isso é central para a formação do público e do senso crítico, porque nessas exibições, e no debate que vem depois, é que as pessoas constroem um olhar diferente sobre os filmes, observando não só o conteúdo, mas também a forma dessas obras”, apontou Alessandra.
Conforme a professora, eventos como o Painel Audiovisual e o festival 1º Plano só reafirmam a tradição da cidade no campo cinematográfico. Nessas mostras e no novo Bacharelado em Cinema e Audiovisual do IAD, ela percebe um novo fôlego para a atividade na região: “Em 2016, nós tivemos a 1ª Mostra de Cinema Audiovisual do Instituto de Artes (Mocina), que mostrou a quantidade da produção que vem sendo realizada, por alunos e ex-alunos. Isso contribuiu para que a cidade entenda a importância de apoiar esse movimento e ter um novo olhar sobre a atividade cinematográfica”.
O cinema independente, que historicamente encontra pouco espaço para divulgação e distribuição nos domínios das grandes redes, permanece restrito às exibições em festivais. Porém, em meio ao movimento de resistência, do qual fala Alessandra, os cineastas parecem descobrir um cenário promissor, mais próximo e acessível ao público em geral.
Para Marcos Pimentel, a recente iniciativa da Prefeitura de São Paulo oferece um modelo para promover a atividade cinematográfica no país. Desde o início desse ano, o Circuito Spcine vem abrindo salas de exibição públicas por todas as regiões da capital paulista que – por meio de equipamentos modernos e por valores acessíveis (ou inteiramente gratuitos, variando de caso para caso) – oferecem uma programação que combina as produções mais comerciais com uma filmografia independente. Conforme o cineasta, o distanciamento do público com o cinema se deve mais a fatores práticos do que por uma falta de interesse por obras autorais. Entre essas barreiras (que afetam tanto as produções independentes quanto as comerciais), ele destaca o alto preço do ingresso e de outros gastos não embutidos, mas sempre presentes no evento de ir ao cinema. Outra, seria a dificuldade de atrair um público que, com a internet, tem outras formas de consumir esses conteúdos.
“Dizer que o público brasileiro não tem interesse pelo cinema nacional, artístico, é um mito. A grande sacada do Spcine é remover o obstáculo do preço, atrair e incentivar o público, apresentando essa outra linguagem. E é uma forma de aproximação muito interessante, porque dá uma satisfação à população sobre o que vem sendo produzido com os investimentos estatais”, afirmou Pimentel.