A inquietude transformada em arte é o que a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) oferece ao público na exposição “Marcus Kamil – A arte singular de um artista controverso”, resgatando a obra deste juiz-forano de coração, que deu nuances especiais aos anos 70, 80 e 90 do século XX, com um trabalho em que conseguiu desvendar não apenas os meandros de seu tempo, mas, principalmente, sua própria persona. Iniciativa da Pró-reitoria de Cultura (Procult), a mostra chega ao Espaço Reitoria, no campus, nesta quinta-feira, dia 11, paralela ao lançamento do livro em homenagem ao artista, que deixou uma herança de cores e formas vibrantes. Ambos têm curadoria de Alexei Waichenberg. A exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h, e sábados das 9h às 12h, até 11 de setembro.
A face atemporal das obras é um elemento que instiga o observador e lhe proporciona uma viagem em direção a diferentes épocas, décadas em que Juiz de Fora mostrou uma atípica efervescência cultural. Jeana Kamil, prima do artista e autora do livro, destaca o virtuosismo do pintor, que flertou com inúmeras possibilidades, indo do figurativo ao futurismo, passeando pelo fauvismo, pelo abstrato e pelo tachismo. Detentora dos direitos da obra do irmão, Márcia Kamil trabalhou para concretizar a mostra, que tem caráter retrospectivo, com expografia de Ione Alves.
A pró-reitora de Cultura, Valéria Faria, observa a importância de se revisitar o trabalho de Kamil, não apenas para homenageá-lo como também para torná-lo conhecido pelas novas gerações. Ela própria não teve oportunidade de uma convivência maior com ele e acredita que a exposição torna possível um mergulho mais profundo no universo do artista, que, espontâneo por natureza, trabalhou diferentes temas, utilizando materiais diversos, com habilidade e sensibilidade ímpares no emprego das cores, das formas e das texturas.
Puro transbordamento
Em um quadro, a bandeira do Brasil sangra onde deveria estar a faixa branca com a chancela Ordem e Progresso, deixando o recado sobre o peso e os reflexos da ditadura militar e da censura que fez tantos artistas se calarem. Em outra tela, uma multidão sem rostos referencia a invisibilidade do povo, como a mostrar o rebanho sem direção. Claras farpas políticas em determinado instante, pura poesia no momento seguinte, quando Marcus Kamil envereda pela paisagem interior da casa mineira, fruteira cheia no peitoril da janela com cortinas abertas para deixar entrever o verde e o casario simples das ruas lá fora.
Como falar de Marcus Kamil sem mencionar o riso fácil, às vezes nervoso, que precedia um abraço a quem lhe despertava empatia? A esses, frases gentis, algumas vezes inesperadas, chegavam com o presente de uma nova série de criações, mais amenas, referendando a serenidade do campo, das montanhas das Gerais, das construções tipicamente interioranas a contemplar o verde das matas e o azul do céu, tudo sob a luz de um sol vermelho, quase a lembrar o sertão de Guimarães Rosa. Em uma obra em particular, o artista revela suas influências, tributo velado a Tarsila do Amaral.
Para conhecer o artista, há que espreitar suas telas, e, para isso, nada melhor que observar aquela em que ele parece visitar Gustav Klimt. No quadro em questão, sem título, Marcus Kamil oferece um caleidoscópio, onde não estão descartadas as influências de Joan Miró. Mais importante, porém, os traços delicados revelam uma vertente especial do juiz-forano, capaz de se aventurar por caminhos próprios, sem ter que se justificar a quem quer que seja. Tudo uma questão de transbordamento, surpreendentemente resultando em traços lúcidos e maduros.
Poética particular
“Quem me vê assim cantando, não sabe nada de mim. Dentro de mim mora um anjo, que tem a boca pintada, que tem as unhas pintadas, que tem as asas pintadas”. De Sueli Costa e Cacaso, esse trecho da música bem poderia definir Marcus Kamil, cujo desejo de liberdade era parte inseparável da pessoa e do artista. A primeira percepção de que a arte seria seu caminho veio do primo Jean Kamil, que o presenteou com sua primeira tela em branco. Dali para frente, poemas pictóricos estavam lançados.
Foi também Jean Kamil quem reconheceu a necessidade de resgatar a obra como um todo. Veio dele a ideia de reunir os dados, traçar a biografia e organizar as coleções para a feitura de um livro que homenageasse o artista e eternizasse seu trabalho. Quem abraçou a tarefa foi Jeana, filha de Jean, que conseguiu o apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes para o projeto, concretizado este ano. Pensando mais além, veio a proposta da exposição realizada pela Universidade.
Segundo Jeana, é de suma importância para o cenário artístico-cultural de Juiz de Fora que uma instituição tão entronizada na vida acadêmica e social da cidade quanto a UFJF colabore com essa empreitada de resgate da memória da obra de Marcus Kamil, que, como ressaltado pela crítica, é também o trabalho de resgate de toda uma geração local que lutou com as suas “armas” pela liberdade de expressão cultural, social e política, encarando todos os anseios de uma época ímpar na história recente do nosso país com determinação, inquietação e criatividade.
Tributo merecido
O livro intitulado “Marcus Kamil – A arte singular de um artista controverso” traz 62 obras, contemplando todas as fases do artista. Jeana ressalta que “notoriamente uma figura polêmica do cenário artístico juiz-forano dos últimos 35, 40 anos, pode-se dizer que Marcus Kamil chegou mesmo a chocar a sociedade local, em especial pelo seu comportamento extravagante. Porém, nesse caso, mais do que possível, é preciso separar o artista e o seu trabalho da imagem que muitas pessoas ainda têm sobre ele, pois o esforço que vem sendo feito para o resgate da memória de sua produção visa justamente mostrar que seu legado artístico é maior do que a personagem e os mitos a seu respeito e digno de colocá-lo, apropriadamente, entre os grandes gênios da expressão visual do fim do século passado”.
Marcus Kamil nasceu em Carangola, Minas Gerais, em 31 de janeiro de 1953, e teve seu dom para as artes aprimorado em Juiz de Fora ao se matricular na Sociedade de Belas Artes Antônio Parreiras, onde conheceu Carlos Bracher, que o apresentou à efervescente Galeria de Arte Celina, um ícone da cultura local nos anos 60. Ali, conviveu com nomes hoje consagrados, recebendo, em 1967, aos 14 anos, sua primeira menção honrosa.
Seu primeiro trabalho catalogado apresenta tema figurativo e data de 1970. Sua produção registra um número atípico de obras em sua última década de vida, quando pintou os quadros acima descritos. Sua morte se deu por infarto agudo do miocárdio, em 18 de dezembro de 1998, na cidade onde desenvolveu a maior parte de sua trajetória artística, legando a Juiz de Fora os rastros de um talento vibrante, que permanece além de seu tempo.
O Espaço Reitoria fica localizado no Campus da UFJF
Outras informações: (32) 2102-3964 (Pró-reitoria de Cultura-UFJF)