Por Monique Campos
O convidado da live realizada pelo Laboratório de Mídia Digital (LMD) na segunda-feira, 20 de julho, foi o professor da Faculdade de Comunicação da UFJF, Wedencley Alves. Com o tema “O tempo da ciência e o tempo da mídia: questões e perspectivas”, o professor propôs reflexões sobre o contexto midiático diante de um acontecimento absolutamente novo e imprevisto que é a pandemia da covid-19 e ainda frente às lógicas e aos discursos científicos. Wedencley é doutor em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pós-doutor pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris (França), professor na graduação e pós-graduação em Comunicação e Sociedade na Universidade Federal de Juiz de Fora e também coordena o grupo SENSUS: Comunicação e Discursos, com ênfase em questões de saúde. A quinta transmissão ao vivo do #LMDLives também foi conduzida pelo professor Faculdade de Comunicação da UFJF e líder do LMD, Carlos Pernisa Júnior.
Wedencley iniciou a conversa relacionando uma série de descobertas relativas ao novo coronavírus que alteraram condutas ao longo dos últimos meses e também algumas recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele destacou que, cerca de sete meses após o anúncio da pandemia, cientistas consideraram a possibilidade da contaminação aérea, de forma que partículas de poluição e poeira poderiam conduzir o vírus, sendo que até então havia a recomendação do distanciamento entre as pessoas enquanto medida de prevenção do contágio. Esse estudo não foi conduzido por sanitaristas ou virologistas, mas pesquisadores ligados à Física, que se dedicam a entender como as partículas atravessam o espaço, conforme explicou o professor. Outra questão é a de que a ciência levou cerca de quatro meses para diagnosticar que os sintomas do coronavírus não eram apenas febre e dificuldade de respirar, mas em alguns casos havia perda do olfato e do paladar. O próprio tempo entre a descoberta do novo coronavírus, os primeiros casos, o alerta de risco global e o início dos processos de isolamento social foi de dezembro de 2019 à segunda quinzena de março de 2020. O professor argumentou, assim, que esses são exemplos do que configura o tempo da ciência: os acontecimentos vão sendo estudados pelos pesquisadores, e as respostas não são imediatas.
O tempo da ciência passa a ser incompatível com as ansiedades humanas provocadas por muitas incertezas, como a de que sair só de máscara é suficiente para a proteção ou então de que deixar as janelas abertas em casa é perigoso, pois a poeira pode trazer o vírus. Além disso, não se sabe se teremos vacina nos próximos meses ou sequer se teremos vacina. As pessoas estão ansiosas diante de uma doença que acarreta centenas de milhares de mortes no mundo e almejam respostas rápidas de especialistas e governos. O elemento midiático, que tem o seu tempo próprio, contribui para as ansiedades e deve ser considerado nesse contexto, conforme ressalta o professor. A ciência vem sendo pressionada a dar respostas definitivas às expectativas da sociedade e também aos anseios da mídia de forma geral.
Wedencley exemplifica que várias matérias jornalísticas que apresentavam recomendações que foram descartadas recentemente – como as que diziam sobre a não existência do contágio aéreo – terão que ser revistas. “Dentro de uma lógica jornalística isso é absolutamente constrangedor e bastante inadequado. Porque geralmente jornalistas buscam respostas muito binárias em relação aos acontecimentos. Como jornalistas, queremos respostas assertivas em relação a sim ou não, certo ou errado, bonito ou feio, o que deve ser feito e o que não deve ser feito”, aponta.
Assim, para explicar o clamor jornalístico por certezas, Wedencley nomeia essa característica como “síndrome de Riobaldo” – Riobaldo é um personagem do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, famoso por não aceitar meios termos. O professor argumenta que, enquanto há uma grande demanda no jornalismo para que as questões sejam aferidas e as respostas definitivas – a “síndrome de Riobaldo” –, o discurso científico traz respostas paulatinas diante dos acontecimentos, o que define o seu próprio tempo. Essa lógica científica, que carece de testes contínuos de hipóteses – conhecido como “princípio de falseabilidade de Karl Popper” –, segue na contra-mão da lógica midiática como está posta na sociedade. “Aí que entra um problema dos discursos não científicos, religiosos, cotidianos e mesmo midiáticos, porque essa busca pelo falseamento, por refutação, para ver até quando uma hipótese de trabalho pode ser sustentada, é um processo muito longo”, esclarece.
O professor diz ainda que não estamos lidando com uma temporalidade única, mas múltipla: não é um tempo da ciência, mas sim tempos de ciências. O tempo das ciências naturais é distinto daquele das exatas; há diferenças entre as temporalidades das ciências humanas, sociais e das que são ligadas à tecnologia. Além disso, o tempo das especialidades também é distinto, o que é evidente nas percepções de cardiologistas, neurologistas, pneumologistas, entre outras, sobre os diferentes efeitos da covid-19 nos organismos, o que está bastante presente nas notícias sobre a doença. A busca por verdades ou respostas mais assertivas, ou seja, todo o trabalho de comprovação ou refutação de hipóteses no campo das ciências, é uma questão estranha aos sujeitos ligados a outras temporalidades. “Isso é a parte mais delicada, que produz mais insatisfação pública em relação ao tempo da ciência e insatisfação jornalística em relação ao tempo da ciência”, explica o professor.
O convidado da live defende que o tempo do mercado também deve ser considerado. Associado às lógicas de disputa de mercadológica, o tempo do mercado é bastante evidente nos anúncios diários de vacinas que são noticiados; uma disputa que envolve bilhões de dólares ou euros, por meio de discursos produzidos para a geração de impacto econômico, político e social. Outro exemplo apresentado pelo professor sobre o tempo de mercado foi de que, quando a OMS anunciou a possibilidade de uma epidemia ou pandemia de grande porte, o que ocorreu antes do final do ano passado, o comunicado não foi levado em consideração, porque o mercado não poderia parar ou se antecipar por conta de algo que não estava plenamente confirmado.
Preprint e a ciência que tem pressa
Durante a live, Wedencley comentou sobre as repercussões das plataformas de preprints – com artigos que ainda não foram revisados por pares, mas apenas foram submetidos a eles –, fenômeno que vem estudando atualmente. O preprint é uma publicação antecipada, criada como forma de agilizar a comunicação científica. “Por que foram divulgados [os artigos]? Porque a ciência tem pressa. Ela não tinha pressa, agora tem. Então isso já é uma temporalidade que está atravessando a ciência”, constata o pesquisador. Segundo ele, cerca de 90% dos artigos contidos nessas plataformas são aceitos e publicados, o que “é uma estatística muito boa” na sua avaliação, porque há apenas uma pré-avaliação, uma possibilidade de publicação antes de uma palavra definitiva. “Isso já é uma demanda midiática. Isso já é uma demanda de uma sociedade que exige uma temporalidade mais rápida por parte da ciência”, complementa.
Entretanto, o professor alerta para os problemas da divulgação desses preprints na mídia, o que vem acontecendo em relação aos estudos sobre a pandemia. Ele ressalta que os 10% de artigos rejeitados fazem uma grande diferença quando se trata de pesquisas biomédicas e exemplifica que pode se tratar de um artigo recomendando medicamentos que não deveriam ser recomendados. “Tudo depende de como se anuncia isso. Se você noticia como conclusivo, verificado, você está trazendo um prejuízo à sociedade”, explica o pesquisador, reforçando que “o jornalista deve alertar à população de que não são estudos definitivos, são provisórios”.
Cronificação e o tempo do mercado
Uma outra questão pontuada pelo professor em sua entrevista foi de que hoje as biotecnologias, principalmente ligadas à indústria farmacêutica, estão muito mais voltadas para a cronificação – tornar o sujeito um paciente crônico – do que para um processo de busca pela cura definitiva. Em se tratando da covid-19, o ideal para a ciência não atrelada à indústria farmacêutica seria a grande descoberta da cura, uma vacina que protegesse a população pelo resto da vida ou ainda um remédio que tirasse as pessoas do estado grave. Mas entra em jogo o tempo do mercado: serão necessárias bilhões de doses, e calcula-se que uma vacina para imunizar a humanidade custe hoje 16 bilhões de dólares, conforme comenta Wedencley. Uma vacina sazonal, ou seja, aquela que teria que ser renovada a cada ano, já seria um ganho extraordinário, de acordo com ele. No entanto, o que acompanhamos é o interesse pela cronificação, que gera um ganho permanente do mercado e ao mesmo tempo inviabiliza ações de saúde pública. Um conjunto de fatores que merece atenção, sobretudo no contexto atual da pandemia e da consequente corrida pela vacina.
“Esse processo tem que ser acompanhado muito de perto pelas instancias políticas, pela sociedade, porque não nos interessa a cronificação. A cronificação é boa para o mercado, mas não é boa para o sujeito”, defende o professor. “Há também outros interesses que não só os dos cientistas em descobrir a solução de um mal, por exemplo. Então essa é uma questão que vai ter mais a ver com o tempo de mercado, com o interesse de mercado, do que propriamente com o tempo da ciência. Esse quadro aí, bem geral e complexo, é o que deve ser levado em conta, principalmente nessa pandemia e nessas questões que nós temos. E deve ser levado em conta pelos jornalistas”.
Aproximações entre biotecnologia e mídia
O professor Carlos Pernisa Júnior perguntou ao professor convidado como ele percebe o crescimento do uso de tecnologias como telemedicina, relógios e pulseiras inteligentes, aplicativos de celular, entre outros, ligados a um tempo que é o “tempo da nossa vigilância”. Respondendo ao questionamento, Wedencley afirma que cultura biotecnológica, hegemônica na nossa cultura atualmente, se estabelece a partir da aproximação com as mídias. Ele explica que essa cronologia tecnológica que regula e normatiza nossa vida sanitária configura um processo conceituado como biomidiatização. Trata-se de uma inserção do saber médico nos nossos hábitos cotidianos, reforçada pela presença de aparatos tecnológicos midiáticos que funcionam para normatizar e controlar os dados médicos e sanitários.
O professor argumenta que é uma dinâmica que deve ser observada sob o viés ético, porque “muitos desses dados vão subir para a Big Data”. Questões como quem vai ter acesso aos dados de saúde da população e como um controle desses dados pode direcionar iniciativas do mercado – como das seguradoras de saúde – exigem cautela na utilização da biotecnologia midiática. “Não temos que ser tecnófagos, não temos que ter medo, mas isso traz questões éticas e bioéticas muito delicadas para a nossa sociedade”, defende.
A necessidade de um jornalismo de processo
Respondendo às perguntas dos internautas, o professor e pesquisador lançou a questão sobre qual seria o ideal jornalístico para a ciência. Na sua avaliação, um jornalismo de processo, ou seja, de acompanhamento gradual das pesquisas científicas em suas rejeições ou aprovações de hipóteses, seria o mais adequado. Porém, o exercício desse jornalismo demanda procedimentos que o tempo de mercado não possibilita muitas vezes. Os tempos que atravessam o tempo da mídia – como o do mercado – impedem olhares cautelosos sobre as diversas situações, como a pandemia, por exemplo. “Cientistas descobriram, novidades da ciência… Isso é um jornalismo de produto. Não é compatível com a lógica científica. O noticiário que nos chega diariamente talvez tenha que ceder um pouco ao imediatismo e ser pensado também como acompanhamento de processo jornalístico que permita educar, que assuma uma função pedagógica em relação à sociedade. A pedagogia também é uma função jornalística. A formação do cidadão para a ciência também é uma função do jornalismo”, reforça o convidado da live do LMD.
Para Wedencley, são poucas as matérias e reportagens que atentam para a complexidade temporal que apresentou em sua fala. Assim como o mundo da ciência precisa se repensar diante desse episódio tão trágico para a humanidade e das pressões que recebe do mercado ou das expectativas sociais, a mídia também precisa fazer suas revisões. Em relação à pesquisa acadêmica do campo da comunicação, o professor diz acreditar “que as universidades estão em um lugar muito interessante para testar novos formatos de jornalismo de processo para a ciência”.
Wedencley também destacou que é a primeira vez que acompanha uma conclamação dos cientistas sociais e humanistas para a pesquisa do contexto da pandemia no tocante às desigualdades sociais, pobreza, relações de gênero, relações raciais, entre outros fenômenos que não podem ser respondidos por sanitaristas, virologistas ou médicos. São pesquisadores que vão analisar porque pessoas negras morrem mais do que brancas nessa pandemia ou ainda porque a letalidade é maior entre os mais pobres. O convidado da live considera que se deve ampliar o pensamento sobre a saúde. “A saúde é um campo complexo, onde inúmeras áreas atuam. Podemos ver que nessa pandemia até a modelagem matemática foi utilizada para pensar os processos de contaminação, estudiosos da poluição estão envolvidos, mas também sociólogos, antropólogos, etc., o que é uma reivindicação bastante antiga de quem trabalha com isso e próximo à interface com a saúde coletiva. Acredito que esses dois caminhos sejam de certa forma promissores se aproveitarmos essa oportunidade”.
Por fim, o professor da Facom/UFJF, respondendo a um internauta, comentou sobre o uso irresponsável da plataforma YouTube na divulgação de notícias sobre a pandemia e como isso atropela as temporalidades destacadas por ele durante sua fala. O caso da monetização dos vídeos, utilizado como exemplo, demonstra a prevalência das lógicas de mercado e da mídia – uso de uma linguagem para se comunicar com a população. Porém, alguns deles disseminaram “aberrações” em relação à pesquisa científica. Ele considera que se pode fazer um bom uso da tecnologia ou, pelo contrário, pode-se propagar fake news ou desmobilizar pessoas a se protegerem. O professor e pesquisador diz não acreditar na censura como caminho para impedir o mau uso, mas a monetização anárquica não é o melhor caminho nesse caso. O tempo do mercado precisaria ser repensado nesse caso, segundo ele, apontando para a não monetização como um caminho que traria resultados melhores se pensados os discursos em disputa.
LMD Lives
O projeto LMD Lives é uma iniciativa do Laboratório de Mídia Digital (LMD) da UFJF que visa a realização de pequenas palestras e discussões online, transmitidas pelo canal do LMD no Youtube. As atividades acontecem quinzenalmente, sempre nas segundas-feiras,às 19h.