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Interfaces entre quadrinhos, educação e acessibilidade são tema de mesa de debates da HQWeek! 2021

Danilo Silva_02

 

Por Helena Amaral

 

A segunda mesa de debates da edição 2021 da HQWeek! foi realizada na noite dessa terça-feira (27/07). Mediada pela professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do grupo de pesquisa Tecnologias Digitais na Educação (TEDE), Kelly Cezar, a atividade teve como tema “HQs e acessibilidade: o direito de acesso ao conhecimento”.

 

O professor e pesquisador da UFPR Danilo Silva deu início às apresentações. Danilo é surdo e fez uso da Língua Brasileira de Sinais (Libras) em sua exposição, que foi oralizada pela professora Kelly. O docente trabalha com HQs no âmbito das histórias geral e da educação dos/para os surdos, temas de sua explanação. Como ressaltado por ele, desde a antiguidade os surdos sofrem preconceitos e são excluídos da sociedade.

 

Neste contexto, Pereira destacou que o momento mais delicado foi o Congresso de Milão, evento mundial que reuniu educadores e especialistas para discutir metodologias de educação para a comunidade surda. Realizada em 1880, a conferência foi marcada por brigas entre defensores do oralismo e das línguas gestuais. Em votação, decidiu-se pelo uso do método oralista no ensino dos surdos e proibiu-se o uso das línguas de sinais no mundo. “Antes, os surdos adquiriam as línguas de sinais, evoluíam, viviam socialmente”, explicou o professor. A proibição vigorou por 100 anos, resultando em um processo de decadência no sistema de aprendizado dessa comunidade.

 

Hoje, a língua de sinais é reconhecida como principal para a comunidade surda (L1), e a língua oficial dos países é tida como segunda língua (L2). Assim sendo, no Brasil, a Libras é a L1 para os surdos e o Português é a L2. A Lei nº10.436, de 24 de abril de 2002, reconhece a Libras como meio legal de comunicação e expressão. A medida é complementada pelo Decreto nº5.626/2005, que, como explicado por Danilo, detalha melhor as características educacionais dos surdos, o sistema bilíngue, a acessibilidade, a importância do intérprete, a inclusão da Libras como disciplina obrigatória em cursos de licenciatura, dentre outras questões.

 

Dando continuidade ao tema, o docente também abordou a utilização das HQs como práticas educacionais para os surdos. “As histórias em quadrinhos têm uma leitura visual. O surdo é visual. As línguas de sinais são visuais. Nós temos muitos recursos e nós amamos as histórias em quadrinhos”, ressaltou, contando que desde criança via gibis da Turma da Mônica e HQs de heróis. Porém, observou que poucos surdos conhecem os quadrinhos, pois não se reconhecem nos personagens.

 

Os esforços por integrar os quadrinhos como ferramentas de ensino deram origem ao projeto HQs Sinalizadas. A iniciativa se volta à produção de materiais bilíngues, integrando histórias e artefatos da cultura surda, e inserindo arquétipos surdos e temáticas de interesse dessa comunidade. Objetiva-se, a partir da união de características dos quadrinhos e da Libras, intensificar os aspectos visuais nas histórias.

 

De caráter interdisciplinar, o projeto HQs Sinalizadas já publicou cinco histórias em quadrinhos, de autoria de alunos de diferentes cursos da UFPR, sob supervisão docente: O Congresso de Milão, de Luiz Gustavo Paulino; A mulher surda na Segunda Guerra Mundial, de Germano Weniger Spelling; Tons de Melancolia, de Lucas Gomes; Surdolimpíadas – encontros linguísticos, de Addyson Celestino; e Sol: a Pajé surda (Séno Mókere Káxe Koixómuneti), de Ivan de Souza.

 

Representatividade surda nas HQs

 

O segundo orador da mesa de debates sobre acessibilidade foi o ilustrador e cartunista mineiro Lucas Ramon. O artista é surdo e, em suas narrativas, se propõe a abordar a perspectiva de personagens surdos e algumas situações comunicativas envolvendo estes e os ouvintes. Ele também fez uso da Libras em sua explanação, que foi oralizada pelo professor Felipe Henrique Baléa.

 

Lucas lembrou que a primeira HQ que teve a oportunidade de ler foi um presente do avô, um quadrinho do Homem Aranha. Contou ainda que, já mais velho, começou a fazer algumas indagações sobre as dificuldades de compreensão das histórias em quadrinhos pelos surdos. Como exemplo, relatou o desafio que era entender, de forma clara, algumas gírias presentes nas tramas.

O ilustrador também recordou que as inquietações sobre como elaborar seu trabalho surgiram quando fazia seu primeiro curso de ilustrações, de nível básico. Disse ter sido um processo difícil e que levou um bom tempo até que finalizasse os primeiros trabalhos da referida capacitação. Ao longo do processo, contou ter percebido que “as crianças surdas estão acostumadas com as marcas de visualidade, não estão preocupadas com marcas linguísticas da escrita”. Também destacou ter observado o quanto o processo de visualização contribui com o desenvolvimento pleno dos surdos, especialmente por meio da Libras.

 

Munido destas perspectivas e experiências, fez sua primeira HQ, Três patetas surdos. Já nesse primeiro quadrinho, optou por diminuir o português escrito e manter a visualidade. A adaptação, que fornece equidade para os surdos, também foi adotada em seus outros trabalhos, dentre os quais figuram Tikinho, surdo em história; Os dinossauros sobrevivem; A história real da minha vida em Libras; e Cores em Libras: imagem, palavras e sinalários. O artista também criou a ilustração da capa do livro O filho dos sonhos – uma história de superação, de Cleusangela Barros.

 

Lucas Ramon também observou que, até pouco tempo atrás, as HQs sinalizadas não eram publicações difundidas em todo o Brasil. “Mas agora, isso [trabalhos como os ali apresentados] oportuniza a todas as crianças surdas uma equidade, em nível nacional. São materiais riquíssimos de literatura surda, literatura sinalizada, inclusive!”, comemorou.

 

Lucas Ramon

 

Os indígenas nas HQs brasileiras

 

O terceiro convidado da mesa foi o professor Beto Potyguara, que é também quadrinista e há cerca de 15 anos vem buscando unir artes gráficas e educação. Em sua apresentação, interpretada em Libras por Maria Emília Nogueira, abordou a representação indígena nas histórias em quadrinhos brasileiras.

 

Potyguara relembrou que a primeira aparição indígena nos quadrinhos foi na HQ As aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora, do desenhista ítalo-brasileiro Angelo Agostini. De acordo com o professor, desde os primórdios o indígena é representado como um personagem altruísta, o bom selvagem, o guerreiro, o belo, o forte.

 

Beto Potyguara apresenta uma classificação na qual aborda seis formas de representação dos indígenas na história brasileira dos quadrinhos. A primeira delas é o que chama de índio colonial, caracterizado por personagens curumins – crianças -, com predomínio de um visual com corte de cabelo xavante. Como exemplo, cita o Tininim, de Ziraldo, e o Papa Capim, de Maurício de Souza.

 

O segundo tipo de personagem elencado pelo docente é o índio histórico. No caso destes, ressaltou Potyguara, houve uma preocupação dos autores em fazer uma pesquisa de campo. Logo, os personagens deste tipo estariam mais próximos da verossimilhança. Como exemplo, cita obras do quadrinista Sérgio Macedo. O índio estrangeiro foi o terceiro tipo elencado pelo educador e se refere àquelas representações nas quais artistas brasileiros reproduzem, de forma consciente ou não, uma imagem que não retrata nossos indígenas. É o caso do índio representado na capa da obra “O Guarani”, de José de Alencar, por Edmundo Rodrigues: trata-se de um personagem caucasiano, branco, forte, que apresenta semelhanças com os índios norte-americanos.

 

Potyguara também fala do índio heroico, em cujas representações são observadas influências dos comics estadunideneses. De acordo com o professor, trata-se de abordagens mais recentes, que tiveram início na década de 90. Nelas, é enaltecido o indígena guerreiro; com as liberdades e os exageros que o gênero permite.

 

Uma observação importante feita pelo orador é o fato de que, fora em casos muito específicos, como em HQs de viés histórico e/ou cultural, a maioria das representações não identifica a etnia dos personagens indígenas. “Eles moram em cidades fictícias e essa parte [étnica] é omitida ou não é bem trabalhada”, pontuou.

 

O quinto tipo de representação dos indígenas é nomeado por Beto Potyguara como um olhar estrangeiro e diz respeito a como autores de fora enxergam nossos indígenas. O professor tomou como exemplo as obras Mister No, de Sergio Bonelli, e Tiki, o menino guerreiro, de Berardi e Milazzo. Por fim, o educador apresentou a categoria um novo olhar, que abarca novas possibilidades de representar os indígenas nos quadrinhos, com abordagens que deem protagonismo aos índios e à cultura indígena. Dentre os exemplos elencados por ele, figura a HQ sinalizada Sol, a pajé surda.

 

Protagonismo indígena

 

Também participaram da mesa de debates a professora Maiza Antonio, indígena da etnia Terena, e o professor e investigador Jessé Martins, que têm parentes sinalizantes em Língua Terena de Sinais. Maiza também é pesquisadora do Instituto de Pesquisa da Diversidade Intercultural (IPEDI), dá aulas na escola Aldeia Cachoeirinha e tem contato com as problemáticas e necessidades da Língua Terena de Sinais. Ela foi responsável pela revisão final e pela parte oral, em língua Terena, na HQ Sol, a pajé surda.

 

Maiza ressaltou a expectativa de receber a HQ sinalizada na comunidade Terena onde vive, destacando se tratar de um material didático muito rico. Ela contou que, durante as falas dos colegas, lembrou-se das primeiras pesquisas de campo que foram feitas na Aldeia Cachoeirinha e manifestou satisfação em ver o livro pronto. “É muito importante essa visibilidade que a minha comunidade Terena vai ter quando chegar esse momento de podermos ter nas mãos esse livro, no qual meu aluno surdo vai poder estar não só fazendo a leitura de imagem, mas lendo na língua de sinais”, comemorou, emocionada.

 

O professor Jessé Martins destacou a importância do trabalho, que diz ser inovador. Corroborando a fala da colega Maiza, disse estarem carentes deste tipo de material. O docente contou, ainda, que tem uma filha e um filho surdos e que, inicialmente, os dois adquiriram um sinal emergente, no âmbito familiar. Foi na escola que tiveram o primeiro contato com a Libras. Para isso, foi preciso que estudassem na cidade, uma vez que na aldeia não havia disponibilização de intérpretes.

 

“Os materiais aqui apresentados são muito importantes, pois, se pararmos para pensar, o livro, nas escolas, é voltado somente para os ouvintes; não vem acompanhado dessas traduções em Libras, por exemplo”, observou. O professor ainda relembrou que, além da língua materna, os indígenas de sua aldeia também fazem uso da língua portuguesa. Logo, reforça a importância da HQ e fala da expectativa de receber o material.

 

Para acessar a mesa e acompanhar a íntegra desse debate, clique aqui.