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Ficção e Evento Racial são temas da palestra de Caio Netto na HQWeek! 2021

Caio Netto

 

Por Helena Amaral

 

Nessa quarta-feira (28/07), a HQWeek! 2021 recebeu o palestrante Caio Netto, Mestrando em Artes pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Com o tema inicial “Racialidades nos Quadrinhos”, a explanação acabou ganhando novos contornos a partir de reflexões tecidas pelo artista, que é também coordenador do Núcleo Negro para Pesquisa e Extensão Universitária (NUPE- UNESP) e integrante do Grupo Interdisciplinar de Raça e Política (GIRA).

 

Ao questionar sobre o que nos vem à mente quando pensamos em quadrinhos e racialidades, Netto ponderou que falar de racialidades não é, necessariamente, falar de pessoas negras. Retomou, então, a ideia de reconhecimento na perspectiva do pensador Frantz Fanon, que na obra Pele Negra Máscaras Brancas tece uma análise crítica sobre a construção das identidades. Com base nestas considerações e na análise de um trecho da referida obra, o mestrando propôs um novo título à sua palestra: “Ficção e Evento Racial”.

 

Para contextualizar a ficção, Caio Netto apresentou conceituações feitas pelo cineasta e artista visual belga Marcel Broodthaers e pelos filósofos franceses Michel Foucault e Jacques Rancière. Em comum às três perspectivas está a intersecção entre ficção e realidade. Para Rancière, por exemplo, a ficção é uma questão de distribuição dos lugares, um espaço que é tanto de atividade pública quanto de exibição de “fantasmas”. Broodthaers, por sua vez, fala que a ficção nos permite apreender a realidade e, ao mesmo tempo, o que é oculto por ela.

 

Para elucidar os conceitos, Netto trouxe como exemplo a webcomic Crisis Zone, de Simon Hanselmann. Publicada no Instagram do quadrinista australiano ao longo do ano de 2020, a trama deu origem a um livro e aborda, com escárnio, situações vividas por seus personagens no contexto da pandemia. De acordo com o pesquisador, a história distende, num nível tão absurdo, a dimensão do que todo mundo estava vivendo, que começa-se a ver o quão normal certas coisas são. Ou seja: a ficção traz à tona questões que estavam ocultas, a realidade em suas dimensões visível e invisível.

 

Caio Netto também abordou o conceito de Evento Racial, proposto pela socióloga Denise Ferreira da Silva. Antes de adentrar no conceito em si, e tecendo conexões com a ficção, o mestrando apresentou a Teoria do Monstro, elaborada pelo pesquisador Jeffrey Jerome Cohen na introdução do livro Monster Theory. Cohen postula sete teses sobre o monstro, explicadas por Netto em sua exposição e das quais destacamos algumas.

 

A primeira delas é a de que o monstro é um corpo cultural. Logo, como ressaltado por Netto, “não existem monstros que não se baseiam em alguma coisa da cultura que deve ser categorizada como monstro”. A segunda tese diz que o monstro sempre escapa. Como explicou o palestrante, nas narrativas, quando o monstro é morto a história acaba: a sobrevivência do monstro é necessária para a sobrevivência das tramas.

 

Cohen também vai postular que o monstro habita o portão da diferença, o que, de acordo com Netto, quer dizer que o monstro não é aquele que nomeia o monstro, ele é diferente, ele é separado. Em outro postulado, o pesquisador norte-americano diz que o monstro policia as bordas do possível. Conforme explicado pelo palestrante, esse policiar se dá mais como forma de manter a continuidade dessas bordas, do que para impedir que alguém chegue até elas. A própria existência do monstro faz com que essas bordas continuem existindo e continuem seguras, complementou o mestrando.

 

Toda a abordagem tecida por Caio Netto sobre a teoria do monstro foi feita para elucidar que “sendo um corpo cultural, inventado, os monstros também são os corpos transformados em outros pelo Evento Racial”. Sobre o Evento Racial, o palestrante explicou que o mesmo é um conceito que “identifica a separabilidade, determinabilidade e sequencialidade produzidas a partir de um ponto histórico exato para criar o Sujeito Transparente/Moderno e o Outro/Categoria da Coisa”.

 

De acordo com Caio Netto, o Evento Racial é produzido em um determinado tempo, por uma determinada parte da humanidade e em um local determinado. O palestrante ressaltou que esse momento é a Modernidade, durante a Revolução Francesa, na Europa. “A ideia moderna precisa se basear na separabilidade, que é o fato de que eu, pesquisador, não sou aquilo que eu pesquiso; eu, observador, não sou aquilo que eu observo. Ou seja, eu criei uma separação entre o sujeito, self, e todo o resto do mundo. A determinabilidade, por sua vez, é aquilo que me permite me reconhecer enquanto pesquisador, enquanto self, enquanto sujeito; é aquela ideia cartesiana do ‘penso, logo existo’”, explicou.

 

Sobre essa máxima, Netto argumentou haver um problema: segundo a mesma, para existir é preciso que o sujeito pense e esse pensar depende de reconhecimento, uma vez que, no âmbito das ideias modernas, nem todo sujeito é pensante: “existem instituições sociais que definem aqueles que pensam, que definem aqueles que são e aqueles que não são alguma coisa; e isso é determinado pela sequencialidade”.

 

 

No que diz respeito à sequencialidade, o palestrante ressaltou que Denise Ferreira da Silva faz sua abordagem tendo em perspectiva a Teoria do Espírito, do filósofo Friedrich Hegel. Em linhas gerais, como exposto por Netto, a abordagem hegeliana fala em uma evolução do espírito/sujeito/ideia de luz, do conhecimento, cujo ápice teria se dado na Europa Moderna.

 

O mestrando destacou que, ao abordar esse percurso evolutivo, o filósofo germânico define as populações africanas como a infância da Europa. “Então, ele cria um lugar de infantilidade, mas também de incapacidade, um lugar onde, por não existir ‘escrita’ – segundo ele -, as sociedades são incapazes de produzir uma historicidade. E se elas não podem produzir uma historicidade, elas não conseguem ter um desenvolvimento civilizatório. Logo, não são sujeitos modernos, não se equiparam ao que a Europa produz”, explicou. Netto ainda elucidou que daí vem a definição de sujeito transparente ou sujeito moderno: aquele que não precisa pensar sobre si mesmo, aquele que só pensa sobre o mundo. Seu oposto é o outro ou a categoria de coisa.

 

Em contraposição a essa abordagem, Caio Netto apresentou um mapa, criado no Reddit a partir de contribuições de várias pessoas, no qual são representadas rotas de comércio medievais dos séculos XI e XII. Ele pontuou que, pelo mapa, é possível observar que já naquela época o continente africano possuía rotas comerciais com vários outros. Logo, vai-se de encontro à ideia, muitas vezes predominante, de que a África só começou a ter contato com o mundo a partir da colonização.

 

O mestrando também teceu considerações sobre como o Evento Racial se torna possível. Para tanto, retoma novamente à Frantz Fanon quando este ressalta que é “o colono que faz e continua fazendo o colonizado” (FANON, 2011, p. 452). Logo, o Evento Racial se dá em função da necessidade dos sistemas coloniais e raciais de produzir a verdade, de determinar qual é a realidade do mundo e dos sujeitos sob seu domínio. Assim sendo, como ressaltado por Netto, o Evento Racial tem um domínio sobre a vida humana.

 

Ao produzir uma divisão histórica de povos a partir da sua cor, o Evento Racial tem como uma de suas consequências a violência gratuita sobre os corpos negros. “Uma coisa que a gente precisa entender sobre o sistema escravagista e que se mantém até hoje é a violência gratuita. Um negro escravizado, uma pessoa negra escravizada, não tinha domínio da sua própria vida; era, literalmente, um objeto”, ressaltou Netto.

 

O palestrante também teceu considerações sobre os conceitos de raça e de racialidades, fez outras intersecções entre ficção e Evento Racial e respondeu a perguntas do público. Para conferir as elucidações e explicações de Netto sobre estes e os demais temas abordados, confira a íntegra da palestra aqui.