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Memorial da República Presidente Itamar Franco lamenta o falecimento de Murílio de Avellar Hingel nesta quarta-feira
Quais causas valem uma vida de trabalho? Quais ideais fazem parte de nossa essência e que nunca podem ser abandonados? Qual o real sentido de se lutar por algo? Para Murílio Hingel, todas essas perguntas poderiam ter apenas uma resposta: Democratizar o acesso à educação no Brasil.
Murílio Hingel conheceu um Brasil onde o acesso à educação era um privilégio de poucos e não se conformou com o que via. Formado em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia e Letras (FALE), Hingel iniciou sua trajetória profissional como professor do Município, do Estado e posteriormente se tornou professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Como diretor da FALE, lutou pela federalização e incorporação desta Faculdade pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Como professor da UFJF, trabalhou pela fundação do Colégio de Aplicação João XXIII.
“Quando Itamar Franco me convidou para ser secretário da educação em Juiz de Fora, em 1967, a primeira coisa que fiz foi chamar o motorista da prefeitura e pedi-lo para me levar às escolas públicas da cidade. Ele me levou em um colégio bem bonito e estruturado. Então eu disse: não é este tipo de colégio que quero ver, eu quero conhecer a realidade do povo, como as escolas de bairros e zona rural funcionam. Então ele me levou para ver a verdade: uma escola com telhado apoiado em um barranco e outra que funcionava atrás de um chiqueiro. Então eu vi por onde precisávamos começar” – relatou Murílio Hingel em uma de suas visitas ao Memorial da República Presidente Itamar Franco, em 2022.
Quando Itamar Franco assumiu o cargo de vice-presidente, novamente seu amigo e conterrâneo foi convocado para prestar seus serviços à educação brasileira. Murílio Hingel foi convidado a presidir a Comissão Nacional do Bicentenário de Tiradentes, onde trabalhou pelo resgate da memória do herói do Brasil, trazendo inclusive a bela escultura de Bruno Giorgi em 1993. Posteriormente, quando Collor foi declarado impedido, Itamar o convidou para assumir o Ministério da Educação a partir de outubro de 1992.
Os desafios a serem enfrentados no MEC em 1992 eram numerosos, mas Hingel se cercou de uma equipe competente e, principalmente, visitou escolas de todo o país visando conhecer as realidades locais, assim como fez em 1967 à frente da Secretaria de Educação da Prefeitura de Juiz de Fora.
Dono de uma memória e uma clareza intelectual invejáveis, no auge de seus noventa anos, Murílio Hingel contava histórias do Ministério da Educação para os funcionários do Memorial como se os fatos tivessem acontecido ontem. Lembrava-se de todos os nomes de pessoas, de eventos e das datas.
Entre os problemas mais graves que abatiam o MEC em 1992, estava a merenda escolar. Havia uma única licitação para uma empresa distribuir alimentos formulados para escolas de todo o Brasil. “Você imagina o caos que era. Uma única empresa precisava produzir alimentos formulados para serem distribuídos para um país do tamanho que é o Brasil. Além de ser nutricionalmente pobre, a logística de distribuição era um horror. Além disso, os regionalismos culinários eram ignorados. Os alunos deixavam de comer verduras, legumes, frutas e ovos produzidos localmente para se alimentar com latas de fórmulas que eles nem sabiam de onde vinha” – contou Hingel para os funcionários do Memorial.
Foi preciso coragem para mudar o sistema que era utilizado até então. Desta análise, de que o problema da merenda escolar estava no formato do projeto como um todo, surgiu o Plano de Descentralização Alimentar, que garantiu o envio de verbas para o Estados, cidades com mais de duzentos mil habitantes e, sem seguida, para cidades de pequeno porte.
Outro problema muito grave detectado pelo então Ministro da Educação foi a oferta de Educação Integral. “Vocês sabem o que é Educação Integral?” Questionou Murílio na ocasião de lançamento da maquete do CAIC doada por ele ao Memorial. “Educação Integral vai muito além de oferecer escolas que recebam os alunos o dia todo. É um sistema educacional visando integrar escola, crianças e famílias, garantindo acesso à qualidade de vida para todos” – explicou o professor. O projeto dos CAICs – Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente – veio da necessidade de levar educação aos bairros socialmente vulneráveis, garantindo que as famílias pudessem trabalhar em tempo integral enquanto as crianças recebiam educação, alimentação e cuidados médicos e odontológicos na escola. Além disso, os CAICs também serviam como locais de confraternização e socialização aos fins de semana. “Houve um caso de um CAIC que foi instalado em um bairro que ainda não possuía água encanada. Nós não podíamos estender a instalação do fornecimento de água para os moradores, pois era uma competência municipal além do contratado. Então veio a solução provisória: instalamos várias torneiras de água do lado de fora dos muros do CAIC. Assim, aquelas pessoas que não tinham água encanada em suas casas podiam buscar lá” – relembrou Murílio Hingel.
A preocupação do então Ministro na educação de povos originários também merece menção, uma vez que foi o Ministro Hingel quem inaugurou a educação indígena no Brasil, com professores indígenas e material produzido nas aldeias, junto com os Tikuna, com o apoio dos pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB).
Destaca-se também do papel de Murílio Hingel nas negociações para a vinda do acervo de Murilo Mendes para a UFJF. Ele conseguiu recursos para a transferência do cobiçado acervo do poeta, constituído por mais de uma centena de obras de artistas modernos do Brasil e da Europa estavam guardados na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, após a morte do Poeta em 1975. Depois de várias negociações, o acervo foi transferido para o Centro de Estudos Murilo Mendes e, posteriormente, foi alocado no atual Museu de Arte Murilo Mendes, considerado o maior ingresso de arte internacional no país desde as doações de Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi.
Para além de todo o trabalho, inspiração e dedicação, Murílio Hingel era a personificação da educação. Cada conversa era uma aula. Aulas de história, de administração, de respeito e, principalmente, de lealdade. Sua lealdade ao seu grande amigo e, por muitas ocasiões, chefe, Itamar Franco, era realmente admirável.
“A lembrança que eu vou levar do Murílio é a de um sujeito muito gentil e sempre disponível a escutar, com atenção, seu interlocutor. Vou lembrar também de suas aulas informais aqui no Memorial, nas quais ele contava, em detalhes, momentos decisivos da nossa República. O último contato que tivemos com ele tem cerca de 2 meses. Ele procurou o Memorial com uma edição impressa do jornal O Globo, na qual constava uma matéria sobre a composição ministerial de todos os presidentes desde a redemocratização e, de maneira injustificável, sequer mencionava o governo Itamar Franco” – relembra Tarcísio Greggio, diretor do Memorial da República Presidente Itamar Franco.
Murílio, de tantos serviços prestados ao país, à Minas Gerais e à Juiz de Fora, sempre combateu esse apagamento do período do Itamar, fundamental para a consolidação da democracia brasileira. Historiador, a ele nunca escapou a importância desse período e de seu justo e adequado tratamento histórico; sua postura combativa, já em avançada idade, é uma imagem inspiradora.
Para hoje, cabe-nos dizer, muito obrigado e até logo!
Daniella Lisieux, última atualização em 04.10.2023 às 20h30
Com contribuições de Geraldo Lúcio Melo (Gerrô)
Pesquisa: Lílian Andrade e Kelly Herrera