1 – Espécies exóticas invadem a Europa
2 – Darwin para principiantes
“Antigamente, as migrações de plantas ou animais eram lentas. O planeta tinha tempo de integrá-los, assimilando as espécies boas ou eliminando as espécies nocivas. Hoje, o ritmo dessas transferências se tornou tão rápido que o globo não consegue mais acompanhá-las”
Gilles Lapouge escreve para “O Estado de SP”:
Europa está preocupada. Pássaros, peixes, mamíferos, insetos e flores vindos do outro lado do mundo estão cobrindo as suas paisagens, semeando a discórdia, a desordem ou a morte. Essas espécies exóticas que têm chegado recentemente estão dando prejuízos avaliados em 12 bilhões (cerca de R$ 35 bilhões) por ano. Segundo o projeto Daisie (Delivering Alien Invasive Species Inventories for Europe), 10.992 espécies invadiram a Europa desde 2002.
Entre elas, algumas são estrelas, como o ratão-do-banhado (nutria), que está fazendo estragos. É um roedor da América do Sul. Ele danifica as colheitas, ribanceiras e diques. Come os ninhos dos pássaros aquáticos. Transmite leptospirose. A Itália declarou guerra ao animal e para isso 3 milhões (R$ 8,7 milhões) foram desbloqueados. Mas ele continua proliferando. Os prejuízos provocados pelo ratão-do-banhado só na Itália já chegam a 11 milhões (quase R$ 32 milhões).
Outras espécies que também vêm se propagando são o lagostim da Louisiana, o mexilhão zebra, a truta de arroio e o bernache, uma espécie de pato selvagem que comumente navega entre o Canadá e os Estados Unidos e que desembarcou na Europa.
Há alguns anos chegou do Extremo Oriente o cormorão (biguá). Tem a vantagem de ser um animal bonito. À noite, o vemos esticar o seu longo pescoço, procuramos vagamente os contornos do Fujiyama e das cerejeiras em flor, mas como esse animal se alimenta de peixes e tem um apetite assustador, ele vem despovoando os reservatórios de água da França.
O fenômeno não é novo. Se o planeta é tão variado, tão brilhante e fértil, em parte é graças ao gosto dos pássaros, mamíferos, insetos ou flores pelos passeios.
Os pássaros são os maiores transportadores das plantas. São grandes “paisagistas”. Eles carregam nos intestinos ou na plumagem pólen e sementes, que vão disseminar do outro lado do mundo. São grandes pintores. Graças a eles o planeta tornou-se esse enorme quadro esplendoroso que nos encanta.
A marinha também deu uma ajuda para os pássaros. Outrora, as florestas do Taiti eram monótonas, apagadas, velhas. Bastou Bougainville, Wallis e Cook descobrirem essa ilha para ela começar a brilhar com as flores e os frutos trazidos nos porões dos navios europeus.
E às vezes o vento completa o trabalho. Em 1974, foi recuperada na Antártida uma colônia de borboletas nativas da África do Sul. Foi feita uma investigação. Descobriu-se que uma ventania inesperada alcançou um bando delas na África e as carregou para o céu antes de derrubá-las na terra, onde as mais valentes conseguiram sobreviver. Hoje, elas parecem muito felizes em sua nova morada.
Mas esses circuitos, que outrora eram fecundos, com a globalização acabaram se tornando em massa e muito precipitados. Antigamente, as migrações de plantas ou animais eram lentas. O planeta tinha tempo de integrá-los, assimilando as espécies boas ou eliminando as espécies nocivas.
Hoje, o ritmo dessas transferências se tornou tão rápido que o globo não consegue mais acompanhá-las.
É o caso do número inconcebível de micróbios que os aviões descarregam diariamente em cada país. Um turista viaja a um país longínquo. Vê uma bela tartaruga, uma alga estranha, um sapo ou uma serpente engraçados. Coloca na sua bagagem e os instala no seu jardim, em Paris ou Estocolmo. E a graciosa tartaruga começa a proliferar. Come tudo. Deixa atrás de si uma terra morta. Às vezes, um animal pacífico em seu país natal perde a cabeça quando está no exílio, longe da sua infância.
Lembremo-nos do que ocorreu com a abelha africana no Brasil e até na América Central.
Esse é o grito de alarme da União Europeia e de institutos como o projeto europeu Daisie. São sinais de que se reconhece que a História do planeta entrou numa “nova casa”. A migração das espécies que, tradicionalmente, aumentava a biodiversidade, dava resplendor às nossas paisagens e fazia da natureza um tapete furta-cor, está prestes a se transformar num flagelo.
“A presença de espécies invasoras, o predomínio de espécies não nativas, pode provocar mudanças irreversíveis”, adverte Montserrat Vilà, da Estação Biológica de Doñana, em Sevilha, Espanha. “E no final elas vão provocar tanto mal quanto as mudanças climáticas ou a poluição.”
(O Estado de SP, 26/4)
2 – Darwin para principiantes
Sai no Brasil “O Que é a Evolução”, clássico moderno de Ernst Mayr, que explica o darwinismo até para criacionistas
Claudio Angelo escreve para a “Folha de SP”:
O biólogo alemão Ernst Mayr (1904-2005) nunca se achou o maior evolucionista do século 20; atribuía a honra ao colega russo Theodosius Dobzhansky. Também não era dono de uma prosa exatamente charmosa, e sim conhecido por seus textos secos.
Pode soar estranha, portanto, a afirmação de que seu livro “O Que é a Evolução” é provavelmente a melhor obra já escrita sobre o assunto desde 1859, quando Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”. Estranha, mas justificada.
A pequena obra-prima de Mayr, que chega ao Brasil no aniversário de 150 anos da “Origem”, é um esforço bem-sucedido de explicar para o público leigo a teoria evolutiva e as modificações que ela sofreu neste século e meio.
Mayr era mesmo o homem certo para o trabalho. Nenhum outro evolucionista teve uma carreira tão longa -80 anos, dos seus 100 de vida. Nem o próprio Darwin, nem o codescobridor da seleção natural, Alfred Wallace, assistiram a tantas reviravoltas no pensamento biológico quanto o alemão.
Não bastasse ter sido um observador privilegiado, Mayr também foi um dos personagens centrais da revolução darwinista. Nos anos 1940, ao lado de Dobzhansky e outros, foi responsável pela Moderna Síntese Evolucionista, que conciliou a evolução com a genética e a sistemática, dando-lhe o seu formato atual. Também foi o pai do conceito biológico de espécie, adotado no mundo todo.
O autor afirma ter escrito “O Que é a Evolução” com três públicos em mente. Primeiro, os biólogos ou não biólogos que desejem saber mais sobre o assunto. Depois, os que aceitam a evolução, mas não têm certeza se a explicação darwinista é a correta. Por fim, os criacionistas “que desejam saber mais a respeito do paradigma atual da ciência evolucionista, mesmo que só para poderem argumentar melhor contra ele.”
Apesar de o cientista declarar que não pretende apresentar evidências exaustivas de que a evolução é um fato (pois, segundo ele, nada convenceria “aqueles que não querem ser persuadidos”), é difícil continuar sendo um criacionista honesto após a leitura.
Mayr se dedica a desfazer equívocos do senso comum sobre o darwinismo ao mesmo tempo em que expõe o beabá da teoria. Ao explicar por que a evolução é um fato, por exemplo, expõe algumas das séries de fósseis mais completas a documentarem transições evolutivas: a dos répteis terápsidos para os mamíferos e a dos cavalos, do Eoceno até hoje.
Volta ao assunto depois, esclarecendo por que o registro fóssil aparenta ser descontínuo -um dos principais argumentos criacionistas contra a macroevolução, a evolução acima do nível de espécie. É tudo uma questão, explica, de acrescentar uma outra dimensão, a espacial, à sucessão das formas ao longo do tempo. Antes que algum criacionista pergunte, Mayr ressalta que esse processo, a evolução especiacional, não resulta de ponderações teóricas, mas de observações.
O livro desfila de forma profunda e ao mesmo tempo didática pelos conceitos-chave do pensamento evolutivo: adaptação, variação, seleção natural, população e especiação. O leitor encontra desde a famosa estrutura do DNA até a famigerada equação de Hardy-Weinberg, que trata da distribuição dos genes numa população (sem a matemática tediosa).
“Controvérsias efêmeras”
Mayr também mergulha na história e na filosofia da biologia, campo ao qual dedicou quatro décadas e no qual fez contribuições originais.
Argumenta, por exemplo, que a demora de 80 anos para que o darwinismo fosse amplamente aceito (da “Origem” até a Moderna Síntese) não se deveu à influência do cristianismo, mas sim a duas ideias filosóficas: o essencialismo (segundo o qual toda a natureza se dividia em classes imutáveis) e o finalismo (segundo o qual havia uma tendência intrínseca na natureza à perfeição).
Para os iniciados em biologia Mayr também reservou algumas pérolas. Do alto de seus 95 anos (o livro foi lançado nos EUA em 2001), pôs-se a ranhetar contra aquilo que chamou de “controvérsias efêmeras”.
Algumas delas, cabe lembrar, ocuparam as carreiras de cientistas de renome, como a teoria do equilíbrio pontuado, de Stephen Jay Gould e Niles Eldredge (“são fenômenos populacionais, sem nenhum conflito com o darwinismo”), ou causaram debates famosos, como o travado entre Gould e Richard Dawkins sobre qual seria o alvo da seleção natural (“é óbvio que é o indivíduo”). Evolução neutra? Existe, mas não é importante. Seleção de grupo? É claro que acontece.
É claro, o “Darwin do século 20”, como era conhecido, não estava imune a enganos. O livro diz que as aves não podem descender dos dinossauros (algo mais ou menos comprovado hoje) e minimiza campos novos de pesquisa que têm completado o quadro darwinista, como a evolução do desenvolvimento e a epigenética. Mayr nunca quis realmente saber dessas coisas. Descontos que o leitor há de dar a uma mente que ainda era capaz de produzir uma obra empolgante e lúcida numa idade à qual muita gente nem espera chegar.
(Folha de SP, 26/4)