Na noite de 3 de fevereiro de 2020, um grupo de, pelo menos, 30 pessoas atacou um terreiro de umbanda na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Pais e mães de santo participavam de uma reunião quando os agressores invadiram o espaço e jogaram uma bomba caseira, fazendo com que os religiosos fossem atacados com pedradas, pauladas, socos e pontapés ao tentarem deixar o local. Em Araraquara, também em São Paulo, em 2 de agosto de 2021, outro terreiro de umbanda foi invadido e depredado. Imagens e objetos usados nos rituais religiosos foram quebrados. Também ganhou enorme repercussão o caso ocorrido em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, quando, no dia 12 de agosto de 2019, traficantes invadiram um terreiro de candomblé e fizeram um churrasco em comemoração ao Dia das Mães. O templo já havia sido depredado pelos criminosos em 2017 e, em março de 2019, quando foi saqueado e os traficantes picharam em um muro a frase “Jesus é o dono do lugar”.

Perseguição e crimes contra religiões de matriz africana continuam a acontecer, mesmo com a garantia da liberdade religiosa pela Constituição Federal (Imagem: José Eugênio Costa/ Pixabay)

Situações como essas – crimes motivados por intolerância religiosa – são encontradas pelo Brasil com frequência. Em 1999, a candomblecista Gildásia dos Santos e Santos, conhecida como Mãe Gilda, fundadora do terreiro Ilê Asé Abassá de Ogum, na capital do estado da Bahia, teve sua casa e terreiro invadidos por um grupo de outra religião. Foi acusada de charlatanismo após a publicação de uma matéria intitulada “Macumbeiros e charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”, publicado no jornal “Folha Universal”, veículo da Igreja Universal do Reino de Deus. A ialorixá baiana e seu marido foram perseguidos, sofreram com diversas agressões físicas e verbais e depredações em seu templo religioso. Mãe Gilda teve infarto fulminante e faleceu em 21 de janeiro de 2000.

Busto de Mãe Gilda em Itapuã (BA). Dia foi criado em homenagem a ela (Foto: Marina Silva/Correio)

Em homenagem à Mãe Gilda, foi instituído no Brasil o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, pela Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro de 2007, que passou a ser lembrado em 21 de janeiro. Esta data também é marcada pelo Dia Mundial da Religião, proposto em 1949 pela chamada Assembleia Espiritual Nacional, criada por membros da bahá’í, uma religião fundada por Mirzá Husayn-‘Alí, autoproclamado Bahá’u’lláh (1817-1892), líder persa que vivia na região que hoje pertence ao Irã e que, à época, estava sob o domínio do Império Otomano.

A Assembleia Espiritual Nacional dos bahá’í foi realizada nos Estados Unidos e definiu que, todo ano, o terceiro domingo do mês de janeiro seria dedicado ao Dia Mundial da Religião. Com o passar dos anos, tornou-se uma data móvel, que, em 2022, será celebrada nesta sexta-feira, dia 21. Seu nascimento se deu pela crença dos bahá’í na unidade entre as religiões, o que poderia levar a humanidade à paz mundial, visto que combateria preconceitos entre as diferentes modalidades de fé. 

Representantes de diversas religiões respondem como seria o mundo mais tolerante

 

Diálogo e respeito

Para o professor Marcelo Camurça, no Brasil as religiões mais perseguidas foram as trazidas pelos escravos, e lembra que, em nome de Deus, populações foram exterminadas (Foto: Arquivo pessoal)

Diálogo, tolerância e respeito. É com esses objetivos que foi criado o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, no Brasil. Professor aposentado do Departamento de Ciência da Religião e docente convidado do Programa de Pós-Graduação na mesma área na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Marcelo Camurça, explica que a intolerância é um fenômeno que atravessa os séculos e se dá pelo fato de uma religião, diretamente vinculada ao poder estatal, econômico e político, perseguir outras crenças.

Desde o Brasil Colônia, as religiões mais perseguidas foram as dos escravos. Na História, observamos que, em nome de Deus, foram perpetradas guerras religiosas com morticínios imensos – Marcelo Camurça

“Desde o Brasil Colônia, as religiões mais perseguidas foram as dos escravos. Mesmo durante a República, pressupondo um grau maior de democracia, as religiões afro-brasileiras foram perseguidas, reprimidas pela polícia. Na História, observamos que, em nome de Deus, foram perpetradas guerras religiosas com morticínios imensos. Por seus perfis étnicos e religiosos, populações foram exterminadas, como os judeus no Holocausto. No Brasil, as populações indígenas originárias foram muito reprimidas a propósito da catequese. Hoje mesmo, os guarani-kaiowa também estão sendo atacados por grupos religiosos em ações persecutórias”.

Espiritismo como charlatanismo

Camurça lembra que, de acordo com o Código Penal de 1890, instituído no ano seguinte à Proclamação da República, o espiritismo era considerado crime e punido com até seis meses de prisão ou multa de 100 a 500 mil réis. A norma associava o espiritismo, exclusivamente, a rituais de magia e adivinhações e refletia a pressão do clero católico e até mesmo da classe médica contra o que chamavam de curandeirismo. “O código de 1890 acusava as religiões espíritas de charlatanismo, como se elas fossem enganar a população e obter lucros. E elas foram duramente reprimidas pela polícia. Romances de Jorge Amado, como ‘Tenda dos Milagres’, por exemplo, mostram esse período de perseguição.”

O marco para a instituição da liberdade de opinião e de crença religiosa foi a Constituição da República Federativa de 1988, que prescreve o Brasil como um país laico, o que significa que, segundo o artigo 5º da Constituição, a liberdade religiosa não pode ser violada. Por isso, locais considerados sagrados para cada credo, seus símbolos e elementos religiosos devem ser protegidos. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, alterada pela Lei nº 9.459, de 15 de maio de 1997, considera crime a prática de discriminação ou preconceito contra religiões.

A intolerância não diz respeito somente ao mundo das religiões, mas aos pactos de organização da nossa sociedade, direitos cívicos estabelecidos em uma regra de convivência democrática mínima – Marcelo Camurça

No entanto, Camurça afirma que, há cerca de dez anos, o Brasil assiste a um recrudescimento de uma violência desmedida contra as religiões afro-brasileiras, o que representa uma afronta aos direitos humanos. “A intolerância não diz respeito somente ao mundo das religiões, mas aos pactos de organização da nossa sociedade, direitos cívicos estabelecidos em uma regra de convivência democrática mínima.”

Podcast traz debate sobre a data

Segundo Maria Luiza Igino Evaristo, a intolerância religiosa está diretamente relacionada às questões de poder (Foto: Isabela Dias)

Em episódio especial sobre o combate à intolerância religiosa, a equipe do podcast Encontros A3, da UFJF, entrevistou a pesquisadora e professora do Departamento de Ciência da Religião da Universidade e líder do grupo de pesquisa Espiritualidades Contemporâneas, Pluralidade Religiosa e Diálogo, Maria Cecília Simões; e a também pesquisadora, doutora e mestre em Ciência da Religião, além de graduada em História pela UFJF, Maria Luiza Igino Evaristo. O programa está disponível nas principais plataformas de podcast, como Spotify, Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts e Castbox.

Para Maria Cecília, a data de 21 de janeiro é de grande importância por ser um marco na luta pelo respeito às diferenças. “Intolerância é uma forma de preconceito, uma incapacidade em aceitar o que é diferente, em não tolerar opiniões e práticas, dogmas, verdades outras. Ela tem vários níveis, desde o discordar do outro até aquele que parte para a violência, para a não aceitação da existência do outro. No Brasil, temos essa data extremamente importante que vem marcar um ganho para a diversidade religiosa.”

A intolerância é baseada em uma questão de poder. Desde que o primeiro português chegou às terras que hoje chamamos de Brasil e conseguiu impor sua cultura, inclusive a religiosa, sobre os ameríndios – Maria Luiza Igino Evaristo

“A intolerância é baseada em uma questão de poder. Desde que o primeiro português chegou às terras que hoje chamamos de Brasil e conseguiu impor sua cultura, inclusive a religiosa, sobre os ameríndios e, mais tarde, sobre os povos negros que foram feitos escravos, essa relação de poder criou todo o pensamento de preconceito que subjuga esses grupos. É uma questão estrutural neste sentido”, completa Maria Luiza Igino Evaristo, que também é chefe de gabinete da Fundação Cultural Alfredo Ferreira Lage (Funalfa), da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF).

Intolerância ao islamismo

Segundo o último censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010, 64,6% dos brasileiros (cerca de 123 milhões) declararam-se católicos; 22,2% (em torno de 42,3 milhões), protestantes; 8% (cerca de 15,3 milhões), irreligiosos; 2%, espíritas; 0,7%, testemunhas de Jeová; 0,3%, seguidores de religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda; e 1,3%, outras crenças como o budismo, o judaísmo, os messiânicos e o islamismo. A relação de poder citada por Maria Luiza foi e é determinada pelos cristãos que compõem a maioria dos brasileiros. 

É essa relação de maioria que, segundo o professor Marcelo Camurça, determina essa visão de uma religião verdadeira e outras demonizadas. “Na Idade Média, havia um aforismo que dizia que, fora da igreja, não havia salvação, só trevas, só heresias, atos demoníacos. Esse impulso etnocêntrico está realmente nos grupos que se estabelecem no poder. Em uma sociedade democrática, cabe ao Estado Laico, que não tem compromisso com nenhuma religião, garantir a liberdade religiosa, de manifestação, crença e  culto.” Maria Cecília completa afirmando que devido à estrutura de poder religioso, as tradições de matrizes africanas são os principais alvos de intolerância, seguidas pelos muçulmanos. “Sendo uma religião muito pouco conhecida e por conta de acontecimentos geopolíticos, que nem incluem o Brasil, o islã é muito alvejado. Vemos um discurso mundial contra o islamismo que é refletido no nosso país.”

Os muçulmanos sofrem devido à soma de dois fatores: a ignorância das pessoas em geral, aliado à mídia, que muitas vezes coloca o Islã como uma ameaça – Mohammed Abdulrahman Al-Shab

Tal reflexão é corroborada pelo estudante muçulmano Marcus Felippe Fortes Fonseca/Mohammed Abdulrahman Al-Shab, representante da Mesquita de Juiz de Fora. “Os muçulmanos sofrem devido à soma de dois fatores: a ignorância das pessoas em geral, aliado à mídia, que muitas vezes coloca o Islã como uma ameaça. No geral, o quadro da islamofobia aumentou no Brasil devido ao pavor causado pelo 11 de setembro. Uma grande massa de pessoas conheceu o Islã naquele baque, que é sentido até hoje. Depois houve a guerra criminosa dos Estados Unidos no Iraque, na Síria e a ascensão do Dawlat Al-Islamiyah (Estado Islâmico) e a mais recente questão do Talibã, no Afeganistão”, reforça Al-Shab, que informa que, no mundo de hoje, são contabilizados cerca de 1,6 bilhão de muçulmanos e que, no Brasil, devem existir de 1 a 1,5 milhão.


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Maria Cecília Simões: No Brasil, temos essa data extremamente importante que vem marcar um ganho para a diversidade religiosa” (Foto: Arquivo pessoal)

Maria Cecília ressalta, ainda, que a visão preconceituosa sobre o islamismo se dá por conta das invasões europeias sobre territórios africanos e árabes e que isso estaria profundamente ligado à ideia de racismo.  “Existe o domínio branco, que subjuga os outros povos. Os brancos nunca foram dominados. Não houve expedição que saiu da África e chegou até a Europa para levar seus habitantes como escravos. Por isso, temos que destacar a destruição das culturas que foram escravizadas. O conhecimento sobre a história religiosa, sobre como o cristianismo chega ao Brasil é importante, como uma forma de colocar as religiões em diálogo.”

Não houve expedição que saiu da África e chegou até a Europa para levar seus habitantes como escravos. Por isso, temos que destacar a destruição das culturas que foram escravizadas – Maria Cecília Simões

Entre as formas de promover o conhecimento, destaca-se a criação de organizações como a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), responsável pela Caminhada Contra a Intolerância Religiosa, que, em 2019, chegou à sua 12ª edição com a presença de cerca de cem mil pessoas na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro. Por conta da pandemia da Covid-19, os eventos de 2020 e 2021 tiveram menor adesão, mas este ano líderes religiosos retornarão às ruas para levar conhecimento à população. “Em outros estados, esses encontros são replicados, como no Rio Grande do Sul, em que a caminhada se articulou com a campanha da vacinação, que foi uma postura das religiões contra o negacionismo e a morte”, destaca o professor Marcelo Camurça.

Camurça conta que, em fevereiro de 2021, foi constituído, através de decreto da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, o Comitê Municipal de Respeito à Diversidade Religiosa, que visa garantir o reconhecimento e o respeito à diversidade religiosa ou à opção por nenhuma expressão de fé, bem como o enfrentamento da intolerância e o direito ao exercício das diversas práticas no município. Entre os membros titulares que compõem a comissão, estão o próprio Marcelo Camurça e o também professor do curso de Ciência da Religião da UFJF Edson Fernando de Almeida. 

“Os comitês, espalhados pelo Brasil, estão lutando, por exemplo, pela implantação de delegacias especializadas em crimes de intolerância religiosa e por colocar, nas escolas, o ensino do fenômeno religioso não de forma confessional, mas múltipla”, destaca Camurça, cujo discurso ganha aderência do padre anglicano, doutor em Ciência da Religião pela UFJF e também membro da comissão municipal, Julio Eduardo Simões. “O Comitê de Respeito à Diversidade Religiosa de Juiz de Fora surgiu  a partir do ambiente de encontros que já acontecem há cerca de dez anos entre lideranças religiosas da cidade. Estes encontros sempre se pautam tanto pela busca de construção ética comum quanto pelo respeito e apreciação da liberdade de crença e, principalmente, da diversidade de crenças. Ele atua mediante acionamento pelos órgãos de governo, estando vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos, e pode ser acessado por qualquer cidadão”, finaliza Simões. 

Ouça o podcast na íntegra abaixo. O programa está disponível nas principais plataformas de podcast, como Spotify, Deezer, Google Podcasts, Apple Podcasts e Castbox.